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Criminalização de condutas e simbolismo penal

Criminalização de condutas e simbolismo penal

Ulrich Beck define em seu estudo as características de uma sociedade do risco. A análise feita parte de uma avaliação histórica das transformações a que a sociedade está sujeita, sendo iniciada a reflexão a partir do período industrial.

Para o autor, é nesse momento histórico que se pode falar em modernidade, tendo em vista todas as transformações tecnológicas e econômicas ocorridas no período (BECK, 2002, p. 02).

Beck ainda coloca que tal modernização deve ser dividida em dois momentos: a primeira modernidade e a segunda modernidade (BECK, 2002, p. 02). A primeira se trata de uma modernidade simples, que foi aquela que ocorreu no período industrial. Já a segunda consiste na chamada modernidade reflexiva, que se verifica em um momento posterior e no qual se passa a constatar as consequências e efeitos da sociedade industrial (simples).

A partir disso, a sociedade de risco é caracterizada pela indeterminação dos riscos globais, por sua imprevisibilidade. O desenvolvimento industrial deu origem a uma crise de legitimidade das instituições que, por consequência, tornou a sociedade insegura em variados ramos. Essa insegurança dá origem a um Estado vigilante, o qual se vê voltado à prevenção de riscos (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 138).

Em suma, pode-se identificar uma crise institucional da sociedade industrial, que culminou em um novo modelo social denominado sociedade mundial do risco (MACHADO, 2005, p. 35) e que exerce influência em vários segmentos sociais, inclusive no Direito Penal.

Isso porque a sociedade do risco é caracterizada pelo sentimento de insegurança. Tal sentimento e a consequente necessidade da busca de prevenções repercutem no Direito Penal. Nesse sentido:

no marco da sociedade mundial do risco, o surgimento de novas situações arriscadas, as incertezas e inseguranças criadas pelos riscos tecnológicos determinaram uma crescente demanda social por segurança, que se revela normativa e substancialmente direcionada ao sistema penal. (MACHADO, 2005, p. 93)

Sobre o sentimento de insegurança na sociedade, Callegari e Linhares (2014, p.126) frisam que o antigo sentimento de controle humano sobre os acontecimentos do mundo deram espaço à sensação de impotência e medo, decorrentes do desenvolvimento social que cada vez mais se abre a riscos invisíveis, a exemplo da ameaça nuclear.

Também a mídia exerce papel fundamental nesse sentimento de insegurança, devido à imensa quantidade de informações a que estamos submetidos, advinda da evolução dos sistemas comunicacionais. Tal fato inclusive tornou possível afirmar que há “uma relação direta entre a quantidade de informação a respeito de episódios de violência e o sentimento de insegurança, o primeiro incidindo sobre o segundo” (CALLEGARI e LINHARES, 2014, p. 126).

Com isso, a percepção dos novos fenômenos gerados pela sociedade do risco e o clamor por segurança acabam gerando uma tendência cada vez maior de adequar o discurso dogmático-penal à realidade dos novos problemas sociais (MACHADO, 2005, p. 92), exigindo-se a atuação imediata do Direito Penal.

E é nesse contexto que se constata o chamado Direito Penal do risco, pois o aumento dos riscos é colocado no centro das reflexões sobre criminalização (PRITTWITZ, 2004, p. 37-38) e as respostas passam a ser buscadas no Direito Penal.

Assim, a criminalização de condutas é considerada como a solução para os problemas, o que configura o chamado expansionismo do Direito Penal que, em resumo, significa o aumento da definição de condutas como crime. Como bem explicam Callegari e Linhares (2014, p. 126):

Para a maior parte da sociedade, o Direito Penal é considerado a solução necessária ao tratamento do fenômeno da violência, assim se iniciando a motivação para uma inflação desse ramo do Direito, com a criação de novos tipos penais e o agravamento dos já existentes. Porém, é fácil perceber que esse movimento expansionista do Direito Penal não resulta em efeitos benéficos como se costuma imaginar, verificando-se um uso meramente simbólico.

Cornelius Prittwitz (2004, p. 38) já constatava o expansionismo do Direito Penal ao tratar da realidade de um Direito Penal do risco, aduzindo que “o que surgiu foi um Direito Penal do risco que, longe de qualquer ambição de permanecer fragmentário, sofreu uma mutação para Direito Penal expansivo”.

Essa expansão consiste, por exemplo, no aumento da criminalização de condutas apenas perigosas e não efetivamente lesivas de bens jurídicos (PRITTWITZ, 2004, p. 39); bem como a criminalização daquelas condutas meramente arriscadas ao bem jurídico, fazendo desaparecer as fronteiras entre a natureza repressiva e reativa do Direito Penal (HERZOG, 2009, p. 55).

Sintetizando as tendências político jurídicas de um Direito Penal do risco, três são as questões centrais apontadas por FIGUEIREDO DIAS (2001) apud MACHADO (2005, p. 99):

(i) a de ampliar a proteção penal a bens jurídicos supra-individuais;

(ii) a de alargar e antecipar a tutela penal, abandonando a lesão ao bem jurídico como centro gravitacional do sistema para criminalizar as inobservâncias aos deveres de conduta e organização, mediante o uso habitual dos tipos de perigo abstrato; e

(iii) a de repensar o conceito de culpabilidade para abarcar não só as pessoas físicas, mas também as pessoas jurídicas.

Também é possível afirmar que, nesse contexto, o Direito Penal se afasta de sua utilização como ultima ratio – caráter subsidiário do Direito Penal, que define que este só pode ser utilizado quando os demais meios do arsenal jurídico sejam insuficientes (CUSSAC, et. al., 2017, p. 115) – para se aproximar de uma função de estabilizador do sentimento de segurança. Em realidade, o resultado é a produção de efeito totalmente contrário, já que não é capaz de assumir uma função de prevenção de riscos.

Dito isso, tem-se que a sociedade do risco exige do Direito Penal respostas que por ele não podem ser dadas. Essas exigências acabam convertendo-o em um Direito Penal do risco, expansivo por natureza e que acaba tendo uma atuação meramente simbólica, já que não é capaz de atender todas as ânsias de uma sociedade do risco.

Sendo assim, vê-se que é preciso ter cautela na criminalização de condutas, além de buscar outros campos de atuação que possam efetivamente resolver o problema, sem que seja necessário recorrer ao Direito Penal.


REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002.

CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. O combate ao terrorismo e a expansão do Direito Penal. Direito & Justiça. v. 40, n. 2, p.125-132, jul./dez. 2014.

CUSSAC, José L. González. BUSATO, Paulo César. CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal brasileiro. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017.

HERZOG, Félix. Algunos riesgos del Derecho penal del riesgo. Revista Penal. Norteamérica, v. 4, n. 4, p. 54-57, abr. 2009. Disponível aqui. Acesso em 11.jan.2018.

MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005.

PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre Direito Penal do risco e Direito Penal do inimigo: tendências atuais em Direito Penal e política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 47, p. 31-45, mar./abr. 2004.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Segunda edición, revisada y ampliada. Madrid: Civitas, 2001.

Ana Paula Kosak

Especialista em Direito Penal e Criminologia. Pesquisadora. Advogada.

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