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A criminalização da homofobia e o indevido expansionismo do Direito Penal

A criminalização da homofobia e o indevido expansionismo do Direito Penal

Um tema que tem causado intensa agitação na comunidade jurídica e na sociedade brasileiras, hodiernamente, é o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, em que se discute, em linhas gerais, a omissão do legislador em não tipificar condutas que configurem atos de homofobia, transfobia e LGBTfobia.

Atualmente, os ministros Celso de Mello, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin manifestaram-se favoráveis à equiparação das condutas acima mencionadas ao crime de racismo, previsto constitucionalmente no art. 5º, inciso XLII da CRFB/1988, e, na legislação ordinária, disciplinado pela Lei nº 7.716/89.

Os ministros que já se pronunciaram em favor do enquadramento das condutas precitadas ao crime de racismo argumentaram, em suma, que há necessidade de criação de tipos penais específicos para assegurar a punição de tais atos bárbaros, que não se coadunam com as liberdades e direitos fundamentais previstos na Carta Maior e, destarte, merecem uma sanção mais rígida pelo ordenamento jurídico nacional, a fim de se assegurar a proteção jurídica devida aos grupos sociais minoritários atingidos por tais atos de preconceito e discriminação.

Em que pesem aos brilhantes argumentos e lições apresentados pelos ministros da Suprema Corte, é necessário se fazer uma ponderação mais aprofundada acerca da expansão do Direito Penal e de seu uso (indevido) como instrumento de transformação social.

Como é cediço na seara criminal, o Direito Penal é informado por uma série de princípios que norteiam sua aplicação apenas em casos extremamente graves, em que os demais ramos do Direito são insuficientes para promover a pacificação social adequada.

Daí se falar que o Direito Penal constitui a ultima ratio. É o que se extrai da cátedra de André ESTEFAM e Victor Eduardo Rios RODRIGUES (2016, p. 147), acerca dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade que regem o Direito Penal:

A subsidiariedade é o reflexo imediato da intervenção mínima. O Direito Penal não deve atuar senão quando diante de um comportamento que produz grave lesão ou perigo a um bem jurídico fundamental para a paz e o convívio em sociedade.

Da mesma forma, também é estreme de dúvidas que, em matéria penal, apenas a lei pode tipificar condutas.  Tanto é assim que o Código Penal consagra, já em seu art. 1º, o renomado princípio da legalidade, ao dispor que

Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Vale lembrar que esses princípios foram se delineando na dogmática penal ao longo de muitos anos, e são produto de lutas sociais e revoluções que preconizavam um Estado menos atuante na esfera penal, em prol da defesa das liberdades civis. As próprias constituições, nesse sentido, serviram, historicamente, de pilares de proteção contra o absolutismo penal estatal.

Na contramão da evolução do Direito Penal, o Supremo vale-se da própria Constituição para estabelecer uma nova forma de criminalização. Há manifestas violações aos princípios fundamentais que regem o Direito Penal. A uma, porque não cabe à jurisprudência, e, sim, à lei, tipificar condutas, já havendo lei ordinária (Lei nº 7.716/89) disciplinando os atos que configuram racismo, dentre os quais encontram-se os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Não há menção, portanto, à sexualidade ou condição sexual como forma de crime racial, não podendo a jurisprudência, em respeito à legalidade, fixar novas condutas típicas. A duas, pois já existem dispositivos penais aptos a rechaçar as condutas homofóbicas e transfóbicas.

Homofobia

Veja-se, sobre esse aspecto, no Código Penal, o art. 61, inciso II, alínea “a”, que traz o motivo fútil ou torpe como agravante genérica, bem como as qualificadoras previstas no art. 121, § 2º, incisos I e II, hipóteses que se encaixam perfeitamente nos casos de prática de atos de homofobia, transfobia e LGBTfobia.

Note-se que, aqui, não se faz, de forma alguma, defesa das abomináveis condutas que são objeto da ADO em comento. Muito pelo contrário: são atos horrendos, que merecem repulsa social e combate rígido por parte do ordenamento jurídico e dos operadores do Direito. Todavia, o que se questiona é a expansão do Direito Penal para instrumentalizar esse combate.

Há uma tendência social, no Brasil, em promover a expansão do Direito Penal, como forma de solução das mazelas de nossa sociedade. A exemplo disso, cite-se as alterações recentes nos crimes sexuais, promovidas pela Lei n° 13.718/2018, que endureceram as sanções para os mencionados crimes.

O referido diploma legislativo ganhou força no Congresso Nacional após a prática de seguidos atos libidinosos em meios de transporte público, tendo a população se revoltado com as consequentes solturas de indivíduos presos em flagrante pela prática de tais atos, os quais, antes da alteração legislativa retro, configuravam tão somente contravenções penais cuja sanção não abria espaço ao juiz, após a audiência de custódia, para converter o flagrante em prisão preventiva.

O poder público, nesse caso dos crimes sexuais, seguindo essa onda punitivista que ganha cada vez mais corpo na nossa sociedade, optou por endurecer o tratamento jurídico-penal dispensado a tais comportamentos, em vez de atuar de outras formas, como aumentando o policiamento nos locais de transporte público, investindo em espaços maiores para locomoção, educando a população, entre outras medidas de segurança pública e de cunho educacional.

O mesmo se tem assistido, agora, com a criminalização da homofobia pelo STF. A Suprema Corte, em violação a diversos princípios e à própria evolução do Direito Penal, tende a expandir esse ramo do Direito para atender aos reclamos da sociedade.

Ao invés de o poder público combater os preconceitos nas bases estruturais da sociedade, criminaliza essas condutas, expandindo a atuação do Estado-penal em um país que possui a terceira maior população carcerária do mundo e vem demonstrando, claramente, sua incapacidade em modernizar o sistema criminal e carcerário.

O mesmo aconteceu em relação ao crime de tráfico de entorpecentes. Criminalizou-se a conduta de traficar, buscando extirpar da sociedade esse comportamento. O legado disso? Uma falida guerra às drogas, que tomou os setores marginalizados da sociedade e abarrotou, mais ainda, nossos presídios, culminando em diversas mortes, falência do sistema penal brasileiro e aprofundamento das desigualdades socioeconômicas.

Em conclusão, o ordenamento jurídico pátrio já conta com instrumentos hábeis ao combate da homofobia, transfobia e LGBTfobia. Não há razão, portanto, para criminalizar novas condutas e expandir o Direito Penal, quando já há mecanismos para promover a correta pacificação social.

O STF tem que afirmar sua conduta garantista e zelar pela prevalência dos princípios fundamentais da dogmática criminal. Em tempos de Menino veste azul, e menina veste rosa, cabe ao poder público buscar outras formas alternativas de redução de preconceitos e discriminações por meio de medidas que incidam sobre as estruturas da sociedade brasileira, ao invés de aumentar o encarceramento em massa e o fortalecimento de um Estado totalitário, legitimado por um Direito Penal cada vez mais expandido.


REFERÊNCIAS

ESTEFAM, André; RODRIGUES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.


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