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Criminologia crítica e o recuo dos “abolicionistas penais” moderados

Criminologia crítica e o recuo dos “abolicionistas penais” moderados

“Hoje, quais serão as potências de revolta nas práticas abolicionistas?” – Acácio Augusto

O pesquisador AUGUSTO (2013), abolicionista penal, sublinha, entre as décadas de 1960 e 1970, o emergir de ruídos contundentes abarcando a possível (e desejável) abolição imediata das prisões; destaca, além dos anarquistas, pensadores de procedências diversas, com diferenças que não excluíram conversações, aproximações e embates potentes (que reverberam ainda hoje contra as prisões).

Três desses indivíduos propositores ressoaram bastante no assunto: Thomas Mathiesen, Nils Christie e Louk Hulsman, este último, decerto mais próximo de libertários (anarquistas) como Edson Passetti e Acácio Augusto.

Hulsman foi um intelectual singular e sublime, mencionado por Vera Malaguti Batista como “o maior de todos os cronópios”, em texto com esse nome na obra “Tributo a Louk Hulsman” (2012), recordando como Julio Cortázar dividia os homens (cronópios, famas, esperanças).

As menções e contribuições de Hulsman, reinventadas e relacionadas com uma diversidade de autores, são também tensionadas no livro “Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos” (2018) prefaciado por Acácio Augusto, valorizando potencialidades que rejeitam radicalmente os recuos, o assunto principal dessa brevíssima exposição.

AUGUSTO (2013) ilustra como no século XXI, boa parte dos propositores recuaram[1] em suas trajetórias e análises abolicionistas (o que, aliás, recorda a atualidade da crítica de Bakunin aos especialistas, que não merece ser descartada), permutando seus alvos radicais por alvos (e pensamentos) mais moderados e domesticados: a minimização da existência da prisão e dos efeitos negativos dos aprisionamentos, amenizando suas ressonâncias com propostas (sem versatilidade libertária e ação direta) que se cristalizam e orbitam as reformas, os redesenhos, nesse sentido, tendendo aos recuos moderados[2].

“Enquanto se expandem e se diversificam os controles punitivos, esses abolicionistas penais de conduta moderada permanecem imobilizados, esperando a volta do Estado de Bem-Estar Social ou um similar, como meio para aproximar a realização da utopia do fim das prisões, que só ocorreria mesmo com o fim da sociedade capitalista e desigual.” (AUGUSTO, 2013, p. 201).

Augusto destaca seu ponto citando Nilo Batista; e explicita como os pertinentes teóricos da criminologia crítica lanceiam com propriedade os aprisionamentos até um limite, e aqui reside nosso pequeno grande detalhe, gigantesco em verdade, incinerado e empurrado para baixo dos tapetes estadocêntricos (abolicionismos não são sinônimos de criminologia crítica).

O segundo desastre acoplado, que ignora os aspectos negativos desse recuo, é o de pretender exibi-lo como espelho, isto é, como o reflexo do que seria o abolicionismo penal, muitas vezes invocando argumentos de autoridade, remetendo a propositores famosos (quando recuam em suas análises mais enérgicas), mas acobertando esse retroceder enquanto tal.

Assinalar de forma absolutamente circular esse recuo (ocultado em sua condição de recuo) de um propositor famoso (entre argumentos de autoridade), e vendê-lo como próprio reflexo “do que é abolicionismo penal”, tornou-se regra no convencimento de que o conteúdo minimalista é conteúdo criminológico crítico abolicionista, traduzindo uma captura na qual em grande medida se inserem anarquistas e marxistas contemporâneos.

Na atualidade das sociedades de controle entre múltiplos aprisionamentos e monitoramentos, necessário retornar à epígrafe de Acácio Augusto e indagar: “quais serão as potências de revolta” (aqui e agora)?

Por mais desagradável que possa soar, não podemos ser enganados por essas propostas[3], de espelhos ludibriosos, que refletem os recuos (para as propostas moderadas) como exemplares das mais potentes proposições pelo fim das prisões (tensionadas por abolicionistas de procedências diversas que contribuíram para a abolição das prisões).

É importante não ser capturado.

Saúde.


REFERÊNCIAS

AUGUSTO, Acácio. Política e polícia: Cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2013.

BATISTA, Vera Malaguti. O maior de todos os cronópios. In: BATISTA, Nilo; ESTER Kosovski (Organizadores). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Política, Sociedade e Castigos: Ensaios libertários contra o princípio da autoridade e da punição. Florianópolis: Habitus, 2017.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.


NOTAS

[1] “Nisto se encontra a importância de não ceder às reformas, insistências ainda presentes, absorvidas e convertidas em incremento das versatilidades dos controles no século XXI, redimensionando capturas, entre as armadilhas das concessões, que reforçam e no limite até ampliam os tentáculos punitivos, expandindo, aprimorando e sofisticando técnicas, discursos e mecanismos de encarceramento. Supressão da potência libertária (criativa e inventiva), que, ao recuar, tornando-se refém dos limites de cartilhas de movimentações do possível instituído, reféns do senso comum democrático, da miséria do pensamento político e dos dejetos sedimentados, se depara com a anulação dos seus abalos desestabilizadores, o encapsular das forças e imaginações que poderiam emergir, transparecer, mas que são suprimidas, encarceradas.” (CORDEIRO; PIRES, 2017, p. 51-52).

[2] “A criminologia crítica e os ‘abolicionistas moderados’, conforme expõe Augusto (2013), produzem pesquisas que questionam o sistema penal até um limite, contudo, não são eficazes em conter a expansão dos controles, penas e castigos: “[…] uma série de concessões que não bloqueiam o controle a céu aberto, o aparecimento de presídios de segurança máxima, como o RDMAX no Brasil, o FIES na Espanha, ou o SUPERMAX nos EUA’ (AUGUSTO, 2013, p. 203). A questão perpassa a compreensão apequenada do que compõe culturas repressivas; assim, ‘criminólogos críticos’ acertam muito, mas também perpetram recuos que em nada lembram os corajosos […] que produziam críticas consistentes, profundas, não complacentes […]. Felizmente não há somente ‘abolicionistas moderados’ […].” (CORDEIRO; PIRES, 2017, p. 52).

[3] “O investimento em garantismo, penas mínimas ou alternativas é parte constitutiva do programa de controle a céu aberto e que não leva ao fim dos encarceramentos. Quem pede garantismos e penas mínimas nunca sabe onde vão acabar as máximas!” Penas alternativas. In: verbetes, Nu-Sol. Disponível aqui.

Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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