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A criminologia midiática e a influência na perda da capacidade humana de ser

A criminologia midiática e a influência na perda da capacidade humana de ser

Inicialmente vale dizer que pensei em várias formas de iniciar esse texto. Tentei de várias formas fugir do que inquietamente sussurrava a minha mente.

Sem sucesso, por fim, me dei por vencido e inicio esse texto com a primeira frase de um determinado manifesto contra a bandidolatria, publicado no início do mês de agosto e assinado por alguns membros do Ministério Público.

O referido manifesto tem início com a seguinte frase:

Você pensa que eles querem garantias para você, cidadão, mas eles só querem que não haja punições de verdade, só querem garantir criminosos... (...).

Contudo, mesmo sendo iniciado com essa frase, esse texto não tem a intenção de discutir o malfadado manifesto.

O presente escrito tem a pretensiosa intenção de trazer a tona, a sempre batida e refletida, ideia da criminologia midiática e a perda da capacidade humana de SER.

Tentaremos, através dessas poucas linhas, buscar entender como a mídia tem o poder de influenciar na formação da opinião social e como tem o condão de promover o distanciamento entre o nós e eles.

Na busca de tentarmos buscar esse entendimento, imperioso se faz ressaltar o salto significante que a imprensa conquistou no final do século XIX, em especial com o caso Dreyfus, na França, o que levou Gabriel Tarde (2005) em 1898 a escrever uma importante advertência:

Infelizmente – escreveu – a imprensa é beneficiária de uma enorme impunidade legal ou ilegal e pode publicar o assassinato, o incêndio, a espoliação, a guerra civil, organizar uma grande chantagem, aumentar a difamação e a pornografia ao nível das instituições intocáveis. A imprensa é o poder soberano dos novos tempos.

Nesse mesmo período os meios de comunicação ganharam uma força expressiva e extorsiva que a tornou capaz de conduzir uma exploração da credulidade pública, além da capacidade de conduzir a sociedade conforme as suas regras.

A grande questão que se impõe atualmente é como a mídia tem esse poder de criar meios de se canalizar a vingança contra determinados grupos humanos fazendo desses verdadeiros bodes expiatórios.

Veja, a situação é tão megalomaníaca que não estranhamos mais que os noticiários e as redes sociais mais parecem uma compilação catastrófica, que nos mantém vidrados, mas, que nos deixam completamente incapazes de formar um mínimo de reflexão sobre o assunto.

Ou seja, cria-se uma massa criminosa de seres “diferentes” os eles, identificados por estereótipos que tem a única função de condená-los a exclusão da vida em sociedade, pelo simples fato de serem “diferentes” e “maus” ao contrário de nós que somos pessoas decentes e cidadãos de bem.

Quantas vezes já não ouvimos, lemos ou até mesmo publicamos em nossas redes sociais (que convenhamos, de um tempo para cá virou um grande tribunal), que atualmente não existe mais a possibilidade de dormir com as portas e janelas abertas, que somos reféns em nossos próprios lares, que eles, os maus, atrapalham as nossas férias, sujam por todos os lados por onde passam e por isso devem ser separados do convívio social, para que, enfim, possamos deixar de ser reféns da bandidolatria que nos assola diuturnamente.

O que não podemos esquecer é que também somos eles, e, portanto, podemos fazer as mesmas coisas. Certo é que, não se mostra necessário a publicização midiática para que possamos entender que os parecidos podem fazer as mesmas atrocidades que eles cometem.

Para melhor entendimento cabem as palavras de Talât: “Reprovam-nos por não distinguir entre armênios culpados e inocentes, mas isso é impossível, dado que os inocentes de hoje podem ser os culpados de amanhã”.

Usamos esses estereótipos de fatos praticados por eles de forma mais ou menos violenta ou gratuita, carregados de certa violência, enquanto as nossas são minimizadas, quando não totalmente suprimidas ou divulgados de uma forma mais leve, diferentes, pois, não devem servir para nos excluir do convívio social, tendo em vista que esse estereótipo não cometeu uma atrocidade semelhante à deles.

Contudo, como disse a pouco, não basta que se crie um bode expiatório, é preciso que eles sejam temidos, infundam medo para que se possa concluir que devam ser excluídos da sociedade como sendo os únicos responsáveis por todas as nossas inquietudes.

Isto é, ó único perigo que nos cerca, que cerca a nossa vida, são eles, os marginalizados. Se há outros, são menores, distantes de nós e vivemos replicando, pois temos como a mais acabada síntese, de que isso não vai acontecer conosco.

É como brilhantemente nos explica Zaffaroni (2012),

(...) É o que mostra a televisão, o que todos comentam entre si, o que se confirma de boca a boca na sociedade, o que se verifica através do que o outro me conta. Deste modo, o eles é construído como o maior, quase único perigo social.

Dessa forma, o corpo social se volta contra eles, estigmatizando como violenta qualquer  manifestação que vá contra a construção da realidade que entendemos e queremos como ideal, ou seja, a nossa realidade.

É como que se tivéssemos a capacidade de ouvir os pensamentos daqueles iguais a nós, quase que gritando a plenos pulmões por uma aspiração higiênica contra eles. É como se de um dia para o outro, começássemos a adotar o princípio do Three Strikes out[1], gestada na década de 70, no Estado do Ilinois.

Quero dizer, não estamos preocupados com a gravidade do delito o que nos aflige mesmo, o que tira o nosso sono é como vamos eliminar de forma mais rápida, eles, usando como desculpa a probabilidade de se evitar que um ladrão de galinha se torne um homicida, sem que possamos nos dar conta de que na verdade somos nós quem construímos esses homicidas.

É nesse ponto que consigo explicar o motivo de fazer referência ao manifesto com o qual iniciei o texto.

Quando a influência midiática nos auxilia na identificação deles, essa mesma imprensa nos domina ao ponto de acreditarmos que tudo que fazemos com eles é pouco, aliás, acreditamos que nada é feito, tudo é generosidade, bons tratos e gastos inúteis para o Estado.

Vejam implicitamente o que estamos buscando com esse discurso? Reivindicamos a morte para eles, os diferentes, os únicos responsáveis por todos os nossos perigos.

E a nossa capacidade vai além, conseguimos incredulamente, justificar essas mortes e muitas outras não divulgadas, como sendo um produto da necessidade de se purificar, de se eliminar os germes do corpo social, o lixo social, a escória da sociedade!

Em síntese, o que se pretendeu demostrar nessas poucas linhas foi o poder midiático na construção de um inimigo comum, ou melhor, na construção do único e real inimigo (o eles) e, além disso, o poder da nossa incapacidade de SER, da nossa indiferença com o outro, de se por no lugar do outro, de sentir a sua dor, antes de condená-lo a exclusão social.

Pois, eleger vítimas para que se produza empatia e através dessa provocar o ódio entre as pessoas, frente à indiferença, a exclusão é sem sombra de dúvidas a maior imoralidade que se pode imaginar.

Não percamos a nossa capacidade de SER!


REFERÊNCIAS

TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. Coord. GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. São Paulo. Saraiva. 2012.


NOTAS

[1] Essa Teoria tem como referência a ideia de que o criminoso que obteve mais de 02 (duas) condenações criminais é irrecuperável e deve ser afastado definitivamente do convívio social ou neutralizado por um longo período de encarceramento (prisão perpétua com possibilidade de livramento condicional após o cumprimento de uma pena mínima de 25 anos de reclusão). Cabe destacar que a expressão “Three Strikes Laws” vem do baseball, que é um jogo bastante popular nos Estados Unidos. Esse jogo tem uma regra básica que estabelece que um rebatedor tem apenas 03 (três) tentativas para rebater a bola, sob pena de ser eliminado do jogo. Na verdade, o pressuposto dessas normas é de que esses indivíduos não seriam passíveis de reabilitação. In – APPLEGATE, Brandon K., CULLEN, Francis T., TURNER, Michael G., SUNDT, Jody L. Assessing Public Support for Three-Strikes-and-You’re-Out Laws: Global versus Specific Attitudes.Rev Crime Delinquency, v. 42, n. 4, 1996.


Mais sobre Criminologia Midiática e Espetacularização Midiática da Violência:

Criminologia midiática: a criação de estereótipos à la Escola Positiva Italiana – AQUI.

O papel da mídia na construção estereotipada da figura do “criminoso” no Brasil – AQUI.

André Parmanhani

Advogado (RS)

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