Criminologia ou futurologia: horizontes para uma política social/criminal distópica?
Criminologia ou futurologia: horizontes para uma política social/criminal distópica?
Imagine a seguinte situação: um software processa, a cada segundo, informações de toda a população, o que perfaz a casa de yottabytes (unidade de medida que equivale a trilhão de terabytes) de dados e metadados. Prevê, com isso, a linha comportamental e o provável futuro de qualquer ser humano.
Por exemplo, ao visualizar o perfil de alguém, pode-se deparar com alertas do tipo: “propensão ao crime”; ou, ainda, “reprodução não permitida”. Com os elementos fornecidos pelo software, a companhia responsável, contando com o aparelhamento estatal, elimina do convívio social as pessoas consideradas perigosas ou divergentes. Esta é a realidade futurística ilustrada em uma série da produtora HBO – cujo nome não será exposto por motivos de spoiler.
A pretensão de antever o comportamento humano, contudo, não é nada inédita, tampouco futurística. Trata-se de uma preocupação antiga, inclusive, no âmbito da Criminologia.
No século XVI, a pseudociência da Fisionomia, ao tentar explicar o fenômeno do crime, traçava um paralelo entre o exterior e o interior, entre a aparência e a alma. Quase que como um complemento, sobreveio a Frenologia, que observava a criminalidade com base na análise do crânio do ser humano, do que surgiu a teoria da localização ou teoria do crânio.
Adiante, surge a teorização do famigerado Cesare Lombroso (1835-1909). Na mesma linha determinista da Fisionomia e da Frenologia, o baluarte da Escola Positiva desenvolveu o conceito do que se denominou criminoso nato, defendendo um nexo entre características biológicas e a propensão à prática de delitos. Corpo assimétrico, grande envergadura dos braços, queixo quadrado, pouca barba e orelha de abano são alguns dos atributos por ele indicados.
Tal arcabouço teórico, que chegou a servir de fundamento a políticas eugenistas no século passado, foi, posteriormente, alvo de intensas críticas.
Cerca de um século depois, o criminólogo brasileiro Leonídio Ribeiro, em entrevista ao Jornal Amanhã, na edição de 12 de novembro de 1950, afirmou que os médicos do Congresso Internacional de Criminologia chegaram à conclusão de que “é possível descobrir e até identificar certos criminosos antes da prática do delito” (Trecho extraído de: VIANA, Eduardo. Criminologia. 8. ed. Salvador: JusPodivm. 2020, p. 69).
Tratando dessa espécie de neodeterminismo, que resgatou elementos do controverso biologicismo lombrosiano, Eduardo Viana, professor da UFBa e da UESC, elenca alguns fatos curiosos (em Criminologia, 2020, págs. 69-71). Vejamos.
Na segunda metade do século passado, chamou atenção o chamado cromossomo assassino XXY. Ao examinar geneticamente o francês Daniel Hugon, condenado pelo homicídio de uma prostituta de 62 anos, constatou-se uma anomalia: enquanto, normalmente, o cromossomo dos homens é formado pelo par XY, o de Daniel continha um duplo Y.
A partir daí, desenvolveram-se pesquisas acerca da relação entre o crime e a referida anomalia genética. Em um artigo na revista Nature (1965), a geneticista Patricia Jacobs discutiu um estudo realizado com 197 pacientes encarcerados em um hospital escocês, dentre os quais sete homens portavam o duplo Y. Diante disso, chegou-se a falar em gene da delinquência, com base no qual se pedia, inclusive, o reconhecimento da inimputabilidade criminal.
Em 21 de junho de 2013, o New York Times publicou uma matéria sob o título “Assassinos por natureza”, referindo-se a um estudo de Adrian Raine, intitulado, em tradução livre, “A Anatomia da Violência”. O psicólogo britânico acredita que 50% dos crimes são pré-determinados biologicamente.
No espectro de uma nova biologia criminal, modelos teóricos reputam-se capazes de explicar o fenômeno do crime a partir de – dentre outras – variáveis biológicas, como a sociobiologia, a neurofisiologia, a genética criminal e, até mesmo, a teoria evolucionista racial, de J. Philippe Ruhston (1995). Revisitando conceitos que pareciam ter sucumbido, consideram-se peculiaridades biológicas como fatores de risco. Por exemplo, uma “inteligência” inferior (fator biológico) pode culminar em fracasso escolar ou profissional, provocando uma frustração que, possivelmente, favorecerá um comportamento delituoso.
Em paralelo, é interessante citar os movimentos criminológicos, do século XX, chamados defensivistas ou de defesa social, pelos quais se propõe, numa vertente radical, a substituição da responsabilidade pela antissocialidade subjetiva. Dispensando considerações acerca do seu propósito inicial, tal sistema sugere fórmulas perigosas, como os “índices de antissocialidade”, que legitimariam medidas de prevenção pré-delituais, ou seja, a antecipação de (re)ações antes da prática do crime
Sobre o chamado “índice de antissocialidade”, é inevitável lembrar do livro O Estrangeiro, de Albert Camus, em que o personagem Meursault, acusado de homicídio, mais parecia estar sendo julgado por não ter chorado no enterro da mãe. Provoca-se: legitimadas medidas pré-delituais, Meursault seria punido ou neutralizado antes mesmo de cometer o suposto homicídio, por, simplesmente, ter agido de um modo reputado como antissocial?
Ao fim e ao cabo, entre essas teorizações, cujos olhares se voltam à prevenção do comportamento desviado, podem ser verificados dois fatores centrais: o biológico e o (psico)social.
Pois bem. Atualmente, sabe-se que a manipulação massiva de dados é uma realidade. Basta lembrar o ocorrido nas últimas eleições presidenciais dos Estados Unidos, em que a empresa Cambridge Analytica obteve dados sigilosos de 50 milhões de usuários do facebook para, em tese, favorecer o então candidato Donald Trump.
Em 2013, Edward Snowden, ex-consultor técnico da Agência Central de Inteligência (CIA) estadunidense, revelou ao The Guardian que a Agência Nacional de Segurança (NSA) coletou dados de ligações telefônicas de milhões de cidadãos. Pelo programa monitoramento chamado PRISM, o governo teria logrado acesso a fotos, e-mails e videoconferências vinculadas aos serviços de empresas como Google, Skype e Facebook.
Sabemos que, dioturnamente, nossos dados estão sendo extraídos enquanto navegamos pela internet. Quanto a isso, mais parece haver um processo de naturalização. Quem já não se depararou com a publicidade de um bem de consumo sobre o qual havia conversado oralmente? Por vezes, chegamos a questionar: estaria um algoritmo, por intermédio dos nossos dispositivos móveis, escutando tudo o que falamos?
Por outro lado, o tema da manipulação genética também tem suscitado debates, notadamente no âmbito criminal. Para representar o atual estado da arte, vejam-se as alterações promovidas pelo Pacote Anticrime (Lei n.º 13.964/2019), que tornou obrigatório, ao condenado, o procedimento de identificação do perfil genético, sob a pena de falta grave. Em menos de um ano da alteração legislativa, o número de amostras totais no Banco Nacional de Perfis Genéticos (BNPG) pulou de 18.080 para 70.280, representando um crescimento de 288,7%.
Diante desse breve e incompleto panorama do que, até então, veio a público, verificamos (o caminho para) a combinação de dois elementos poderosos: a manipulação massiva de dados informáticos e a manipulação de dados genéticos.
À disposição de seja lá quem for, estão os instrumentos ou o arsenal para uma política social e criminal distópica. Com efeito, os fatores biológico e (psico)social – supostamente aferíveis pela análise de dados genéticos e informáticos –, se tidos como definidores do futuro de cada ser humano, podem ser utilizados de pretexto para que haja um perigoso controle social.
Nunca é demais lembrar que a ciência não traduz verdades absolutas ou indiscutíveis, tampouco definitivas. Está, isto sim, em constante mudança. Ora, nos idos do século XIX, prevaleceu a ciência do biologicismo lombrosiano. Este mesmo que, posteriormente, foi superado e duramente criticado, sendo reputado, hoje, por alguns, como uma pseudociência e tratado, não raras vezes, com desdém.
A despeito da movimentação latente aqui relatada, não se pode dizer que, atualmente, no campo científico, predominam as concepções (neo)deterministas. Pelo menos, não hoje e não no discurso oficial da ciência. Entretanto, e se, futuramente, predominarem tais concepções no discurso científico? Ou, quem sabe, no discurso não oficial do poder?
Enfim, como o intuito deste ensaio enseja mais interrogações do que pontos finais, ficam as provocações: supondo-se que a ciência e a análise massiva de dados informáticos e genéticos, em conjunto, seriam capazes de antever o comportamento humano, estaria justificado que uma entidade, que se coloca em uma posição superior, revestida de poder político ou de poder econômico, interviesse na esfera individual das pessoas? Tal suposição, assim como ocorreu em movimentos eugenistas do século passado, serviria para legitimar políticas deletérias, fundadas no medo e no afã da prevenção? Afinal, pune-se porque se faz ou porque se é? Qual seria o preço do punir antes do fazer? Qual seria o preço de punir o ser?
Na série citada no início do texto, quando a população tomou conhecimento da manipulação de dados para o controle – ou a heterodeterminação – social, não se poderia exigir um desfecho diferente: caos e revolução.
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