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A crise do sistema prisional brasileiro: e eu com isso?

A crise do sistema prisional brasileiro: e eu com isso?

Historicamente, os direitos humanos surgem concomitantemente e, com maior força, após a Revolução Francesa de 1789, pautados nos ideários de conquista, reconhecimento e preservação de garantias individuais, com grande destaque, de forma geral, para as obras de Rousseau e, no âmbito do Direito, para a obra de Cesare Bonesana, o Marques de Beccaria.

Em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948 ficou reconhecida a necessidade de que os países observassem tais direitos universais e, com isso, as regras contidas neste documento passaram a subsidiar as discussões sobre a questão, discussões estas que viriam a sedimentar, em caráter universal, a necessidade de observação e preservação dos direitos humanos, reafirmando-se o compromisso e responsabilidade de todos os Estados em promover o respeito universal e proteção de todos os direitos humanos, seja através da promoção da autodeterminação dos povos; seja reafirmando o direito ao desenvolvimento como parte integrante dos direitos humanos universais.

Com isso, atrelada à Declaração da ONU de 1948, surge a recomendação para que os Estados ratifiquem a adesão dos tratados internacionais de direitos humanos, solicitando seja elaborada, entre outras, uma declaração efetiva sobre o desenvolvimento das necessidade ambientais para garantir a sobrevivência das gerações futuras.

Neste sentido é importante observar ainda que o artigo III da citada Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) diz que toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

No que diz respeito a nossa legislação podemos destacar a própria Constituição Federal de 1988, onde existem relevantes artigos referentes aos direitos humanos, tais como: art.1º, inciso III (protege a dignidade humana e a coloca como fundamento da República); art.3º, inciso III (põe como objetivos fundamentais da República do Brasil, entre outros, a erradicação da pobreza e da marginalização a fim de reduzir a desigualdade social e regional); art.5º, caput (coloca todos iguais perante a lei); art. 5º, inciso III (proíbe a tortura, o tratamento desumano ou degradante); art.193 (dá como base da ordem social o bem estar e a justiça social), entre outros.

Assim, da leitura dos referidos dispositivos legais, podemos concluir que todos os indivíduos possuem direitos e deveres, definidos na Constituição, sendo que o cumprimento dos mesmos implicam no exercício da cidadania.

Não obstante o cenário histórico e normativo apresentado verificamos, nas práticas diárias do nosso País, grandes violações aos Direitos Humanos e ao pleno exercício da cidadania, que além de repercutir de forma negativa no cenário mundial, mostra nossa ainda incompleta e ineficaz compreensão da temática, bem como nossa frágil ou inexistente inserção de tal debate na educação do País, mesmo frente ao ordenamento legal que apresenta como função da própria educação formar o indivíduo para o exercício da cidadania.

Nesse passo, relevante destacar a atual – e sempre piorada – conjuntura brasileira no que se refere ao sistema carcerário, especificamente trazendo a midiática situação que vem assolando o Estado do Amazonas.

No início deste ano de 2017, no dia 01 de janeiro, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no km 8 da BR-174, foi palco de um sangrento massacre, em que foram mortos 56 presos.

Agora, novamente no referido Estado amazonense, na UPP (Unidade Prisional de Puraquequera), em Manaus, foram encontrados mortos em celas, sete detentos, tendo sido informado, como no episódio anterior, que as mortes teriam ligação com “disputas internas de facções criminosas”.

Não obstante saibamos que, segundo os últimos dados disponíveis, 10.2 milhões de pessoas estão encarceradas em todo o mundo, o que significa que 144 de cada 100.000 pessoas estão mantidas em prisões e que este número representa um aumento de aproximadamente 20 a 35 por cento comparando com 15 anos atrás, quando a população prisional era de 136 por 100.000, devemos lembrar ainda que o Brasil está em 4º lugar neste top ten, sendo que, nos últimos 15 anos, a população carcerária no Brasil aumentou 160%, atingindo mais de meio milhão de presos em 2014.

Ademais, outro dado relevante que deve ser destacado é que o aumento no número de presos não foi seguido por aumento de capacidade prisional, que pode comportar pouco mais da metade da população carcerária atual, sendo que, ao lado do Irã, o Brasil tem as prisões mais superlotadas entre todos os dez países da seleção[1].

A própria ONU tem afirmado que a crise que se verifica nos presídios brasileiros é resultado do tratamento desumano destinado aos detentos que ali estão cumprindo sua pena ou mesmo apenas e tão somente aguardando seu julgamento.

Ademais a entidade internacional tem procedido inspeções e elaborado relatórios detalhados sobre a situação, alertando o Governo brasileiro sobre as falhas e gargalos existentes.

A Secretaria Especial de Direitos Humanos publicou o relatório elaborado pelo Subcomitê das Nações Unidas para Prevenção à Tortura (ONU/SPT) sobre a inspeção feita em presídios de quatro estados brasileiros em outubro de 2015 que concluiu que a superlotação poderia levar a situações como as efetivamente ocorridas.

Nesse sentido a pressão da ONU tem sido impositiva no sentido de determinar ao Brasil que adote medidas imediatas, imparciais e efetivas no sentido de averiguar os fatos e apurar a responsabilidades daqueles que deram causa à situação e às suas consequências.

Ocorre que, não obstante a pressão internacional que vemos, verificamos que, por outro lado, a opinião pública interna não segue o mesmo caminho, revelando aquilo que sempre se soube: para a densa maioria da sociedade, “bandido bom é bandido morto”, cultivando-se a errônea ideia de que (i) na prisão só há “bandidos” (leia-se, culpados) e (ii) direitos e instrumentos de defesa não devem ser garantidos aos “bandidos”.

Muito nos entristece constatar que no estágio histórico das conquistas de direitos humanos em que os encontramos ainda tenhamos que afirmar a existência – e muitas vezes nos parece, crescente – de grupos populacionais que apoiam massacres e torturas, desde que sejam dirigidas aos “bandidos”, e que, por vezes, não só omitem-se em questões delicadas, como a que estamos aqui trazendo à reflexão, mas que também incentivam, com gestos, palavras e ações, a perpetuação da violência por parte do Estado – desde que em nome da segurança das “pessoas de bem” e contra os “bandidos” – esquecendo-se que tais conceitos – “pessoas de bem” e “bandidos” – são um tanto quanto fluidos e capazes de se amoldar a qualquer “cidadão”, desde que no interesse do “bem comum”, como aconteceu no horrendo episódio nazistas que assolou a humanidade.

Que possamos refletir – e agir – para que os direitos humanos, histórica e duramente conquistados – sejam não só preservados e ampliados, mas também efetivamente observados, respeitados e implementados, sob pena de, não futuro cada vez mais próximo, sermos obrigados a aceitar que muitos de nossos “entes queridos”, senão nós mesmos, sejamos rotulados e tratados como “bandidos”.

E quando isso acontecer, já não haverá ninguém para lutar por nós e, se alguém houver, não disporá de muitos instrumentos e “armas” para usar em nosso favor, pois, nós mesmos, teremos delas abdicado, em nome das “pessoas de bem” e do “bem comum”.


NOTAS

[1] 1º. EUA – População Carcerária 2.217.000 em 2014; 2º. CHINA – População Carcerária 1.657.812 em 2014; 3º. RÚSSIA – População Carcerária 642.444 em 2014; 4º. BRASIL – População Carcerária 607.731 em 2014; 5º. ÍNDIA – População Carcerária 418.536 em 2014; 6º. TAILÂNDIA – População Carcerária 313.580 em 2014; 7º. IRÃ – População Carcerária 225.624 em 2014; 8º. MÉXICO – População Carcerária 225.138 em 2014; 9º. TURQUIA – População Carcerária 174.460 em 2014 e 10º. INDONÉSIA – População Carcerária 161.692 em 2014.

Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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