A crise do sistema penitenciário gaúcho
A crise do sistema penitenciário gaúcho
A crise do sistema penitenciário gaúcho é real e insere-se num cenário nacional de descaso que se acumula por décadas. A ausência do Estado no interior dos presídios leva ao avanço reacionário do crime organizado, que, no Rio Grande do Sul, se estrutura em facções criminosas com características bastante pontuais.
Recentemente, a Polícia Civil conseguiu frustrar uma fuga em massa do maior presídio do Estado, concebida através da engenhosa construção de um túnel, financiado com recursos ilícitos advindos de uma associação criminosa extremamente estruturada ligada ao roubo de cargas e bancos e ao tráfico de drogas.
Dados divulgados pelo TJRS demonstram que, nos últimos 20 anos, o número de presos no Estado saltou de 11 mil para 35,3 mil detentos. Apenas de 2013 a 2016 houve um aumento da taxa de encarceramento de 6,8%. Mantida a projeção, estima-se que até 2027 o Rio Grande do Sul esteja com 60 mil presos e 90 mil em 2037.
Os juízes cobram uma postura efetiva por parte do Poder Executivo, no sentido de criar mais e mais vagas prisionais. Estima-se que seriam necessárias cerca de 2,5 mil vagas por ano, a um custo projetado de R$ 60 mil por vaga, o que representa investimento anual da ordem de R$ 150 milhões, sem contar o custo com a manutenção dos estabelecimentos e com a nomeação de servidores.
A contribuição que o Poder Judiciário alega dar para “amenizar” a crise do sistema penitenciário é a destinação de verbas oriundas das penas pecuniárias a entidades vinculadas à segurança pública, especialmente para manutenção e ampliação de presídios e reaparelhamento das polícias.
Além disso, estão em vias de implantação no Estado varas de execução regionais e a utilização de um sistema de videoaudiências para evitar deslocamento dos presos.
Sete mil pessoas estão hoje em prisão domiciliar por carência de vagas nos regimes aberto e semiaberto no Rio Grande do Sul. Destes, apenas 2900 são monitorados eletronicamente.
Existem 12.300 mandados de prisão pendentes de cumprimento por ausência de efetivo. Caso uma pequena fração destes foragidos venha a ser localizada, já não haverá local apropriado para alojá-los com um mínimo de segurança.
Trinta e dois presídios do Estado possuem taxa de ocupação superior a 200%. Há déficit de cerca de 11 mil vagas, o que ocasiona situações verdadeiramente chocantes, como presos acumulados nas carceragens de delegacias, presos dentro de veículos oficias, algemados em lixeiras e corrimões, a espera indefinida de um local para serem recolhidos.
As violações a direitos humanos são diárias e, levadas a Cortes Internacionais, certamente conduzirão à condenação do Brasil, que é responsável pelas vidas das pessoas que estão sob sua custódia.
Os juízes da Execução Penal gaúcha clamam por um auxílio e revelam sua impotência para lidar sozinhos com a questão.Some-se a isso, é claro, a calamitosa situação econômica do Estado, um dos mais endividados do país.
Em carta, os magistrados externam sua preocupação:
“Os presídios do Estado, em maioria, estão superlotados, com taxas de ocupação de presos muito acima da capacidade de engenharia. Os efeitos da superlotação, somados à ineficiência do Estado, implicam não somente a violação de direitos da pessoa privada da liberdade, mas também o fortalecimento das facções e o aumento da criminalidade e da violência”.
De fato, conforme concluem os próprios juízes, “o sistema se retroalimenta a partir de suas próprias deficiências”. Não por acaso, 70% dos indivíduos que ingressam nas prisões sul-rio-grandenses já possuem alguma passagem anterior pelo sistema.
O problema das rebeliões também é um ponto preocupante que revela o caos estrutural. Assim como em outros Estados brasileiros, o Rio Grande do Sul teve diversas revoltas de presos em diferentes presídios no último ano, resultando em mortos e feridos e em severos prejuízos ao patrimônio público.
Os juízes reclamam não só por novos estabelecimentos prisionais, mas por condições razoáveis e dignas de cumprimento das penas privativas de liberdade, com a disponibilidade de trabalho, estudo e saúde. Do contrário, os presídios produzirão ainda mais violência. Pedem que o Poder Executivo apresente um plano de ação eficaz.
O Secretário de Segurança do Estado anunciou a disponibilização de uma área de 25 hectares para a construção de um presídio federal para 220 presos no município de Charqueadas, porém a área sequer foi vistoriada pelo Departamento Penitenciário do Ministério da Justiça.
Há cerca de 6 anos está em construção uma nova penitenciária na cidade de Canoas para desafogar as demais casas prisionais da região metropolitana. Em fevereiro deste ano, foi inaugurado em Porto Alegre um centro de triagem para evitar o acúmulo de pessoas na carceragem do Palácio da Polícia.
Em menos de um mês, o espaço já registrou suas duas primeiras fugas, porque as grades teriam sido mal instaladas. Estes são apenas alguns exemplos de uma sucessão de erros de gestão administrativa que evidentemente perpetuam e só agravam a crise.
Não há dúvida da necessidade de uma reestruturação do sistema penitenciário gaúcho, com a construção de novas casas prisionais que respeitem minimamente a dignidade da pessoa humana, até mesmo os agentes que lá trabalham.
Porém, se isso terá um impacto real na questão da segurança pública é uma análise bem mais complexa. Melhorar as condições dos presídios e criar novas vagas prisionais não necessariamente implicará uma redução da criminalidade. Isso é um dado básico, que parece estar sendo esquecido por todas as Autoridades que lidam com o problema.
Enquanto o Poder Judiciário tenta transferir a responsabilidade para o Poder Executivo, alegando que já destina verbas aos projetos, na realidade não está referindo que são os juízes que, ao fim e ao cabo, determinam as ordens de prisão.
E vejam, o Estado do Rio Grande do Sul possui a maior taxa de conversão de prisões em flagrante em preventivas do Brasil. De julho de 2015 a fevereiro de 2017, em 84.5% dos casos foi mantida a prisão do suspeito pelo magistrado responsável pela homologação do flagrante.
A série de medidas cautelares menos gravosas que passaram a integrar o Código de Processo Penal com a reforma implementada em 2011 permanece até hoje pouco explorada. Este não é um problema de falta de conhecimento, embora até o possa ser em alguns casos, mas é essencialmente um problema de mentalidade.
O Rio Grande do Sul é um dos Estados brasileiros que mais cultuam o encarceramento. A visão dos juízes apenas espelha a visão da própria sociedade, que se manifesta na postura adotada pelos órgãos de comunicação. É certo que aqui também existe o fator do medo, explorado comercialmente com grande habilidade pela mídia sensacionalista.
Porém, não há como negar que a sociedade gaúcha clama por providências estatais drásticas. A prisão talvez já seja a mais branda delas. Isso pode ter uma influência de nossa formação histórica. Contudo, esta forma de pensar já demonstrou à exaustão a sua falência.
Não há como conceber um sistema penitenciário sustentável se a prisão continuar sendo a primeira e única opção para assegurar que os processos criminais terão um fim ou que os condenados estão sendo adequadamente punidos pelos ilícitos que praticaram.
Há outras opções igualmente eficazes, mas desconsideradas em função da cultura punitiva. Medidas cautelares e penas alternativas precisam urgentemente ser estimuladas para casos em que a prisão não seja absolutamente necessária.
Assegurar a “credibilidade da Justiça” e prender pela gravidade abstrata do delito não são fundamentos aceitáveis, especialmente diante dessa condição de violação sistemática de direitos fundamentais que vivenciamos. O interesse da coletividade é abstrato, já o do indivíduo não, pois é ele que vai precisar sobreviver àquela situação calamitosa.
Num Estado Democrático de Direito, não pode ser defensável enxergar o ser humano como uma coisa, um objeto, desprovido de daquilo que o torna pessoa, que é a sua dignidade.
No campo executivo, investir no crescimento do sistema penitenciário é apenas incentivar o aumento ainda maior do encarceramento. Isso gera altos custos de manutenção, que se não honrados levam à precariedade dos serviços.
À medida que houver mais vagas, mais e mais presos ingressarão nesse sistema. Isso reduzirá a criminalidade? Possivelmente e até provavelmente não.
Hoje, a maior parte da atuação do crime organizado no Estado se dá de dentro próprios presídios.
Ou seja, esses estabelecimentos tornaram-se verdadeiros quartéis-generais do crime, onde reúne-se a cúpula, que transita livremente pelos seus aposentos, com regalias, e ainda recrutam-se e instruem-se novos membros, que passarão a atuar no momento em que deixarem a prisão.
A grande maioria deixa a prisão com a perspectiva de retornar, completando o ciclo vicioso. Atualmente, os presos mandam nos presídios. Há um pacto velado de respeito mútuo com o Estado, que caso descumprido pode ocasionar uma verdadeira guerra, com a perda de muitas vidas.
Este acordo é o que mantém em níveis razoavelmente toleráveis a paz social nas ruas.
Ocorre que, é mais do que evidente, que faltam reais oportunidades para a grande maioria dos jovens provenientes de regiões de risco. Esses jovens são alçados ao mundo do crime por inúmeras razões, mas a principal é, sem dúvida, a ausência de opção, uma vez que este é o meio onde estão inseridos.
A Criminologia nos propicia compreender que o crime é algo aprendido, é uma forma de viver e relacionar-se. Logo, não há investimento mais necessário e mais urgente do que a formação educacional desses jovens. Investir na educação é investir na redução das taxas de criminalidade a longo prazo.
Voltar os olhos apenas para o caos do sistema penitenciário, sem entender as razões que o originaram, dentre elas a cultura do encarceramento, é pensar o hoje sem qualquer preocupação com o amanhã.
Países considerados “desenvolvidos” já se deram conta disso e, nos últimos anos, vêm reduzindo substancialmente o número de presos. Isso só está sendo possível graças a investimentos maciços em áreas sociais.
O tempo de construção de um presídio é o que um jovem demora para receber uma formação profissional digna de atuar no mercado de trabalho formal e de começar a contribuir para o desenvolvimento da nação.