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Crítica a uma prática jurisdicional

Crítica a uma prática jurisdicional

Prezados leitores:

Nos últimos tempos tenho me deparado com muita frequência, especialmente na Justiça Federal, com decisões que indeferem a oitiva de testemunha tempestivamente arrolada em Resposta à Acusação (art. 396-A, CPP). O fundamento do magistrado é no sentido de que à defesa incumbe demonstrar a pertinência da prova testemunhal que pretende produzir, sob pena de indeferimento (art. 400, §1º, CPP).

Recentemente, em um processo que atuo, tive toda a minha prova oral indeferida porque não justifiquei de maneira circunstanciada o que as testemunhas iriam falar. Repito: foram testemunhas arroladas tempestivamente. O magistrado, quando recebe a denúncia, assenta que a defesa deverá, sob pena de indeferimento, indicar a pertinência da prova oral que pretende produzir.

Eu tenho adotado como estratégia, quando isso ocorre, indicar que as testemunhas irão depor sobre os fatos entabulados na peça inicial e que não são abonatórias. Mais do que isso entendo não seja dever defensivo. E o faço por algumas razões.

A primeira, de ordem legal. Não há nenhum dispositivo no Código de Processo Penal que imponha à defesa demonstrar a relevância da prova oral que pretende produzir. Muito pelo contrário, o que há é justamente o contrário. A Constituição da República, no art. 5º, inciso LV, consagra que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. O que a Magna Carta prevê é a mais ampla defesa, pois o processo penal é justamente o limite ao poder punitivo. Nenhuma pessoa poderá ser considerada culpada e ter sua liberdade coarctada sem um devido processo legal.

A segunda, de ordem prática. À defesa, em um processo acusatório, é oportunizado o sagrado direito de se manifestar por último; sempre após ouvir a argumentação e as provas produzidas pelo Ministério Público. Nesse diapasão, questiona-se: Por que teria a defesa que antecipar à parte contrária o conteúdo da prova testemunhal que pretende produzir? Não haveria inversão da prova? 

Assim procedendo, o Ministério Público saberá, antes mesmo de iniciar a inquirição das testemunhas arroladas na denúncia, o que a defesa tem de prova e por qual caminho trilhará. Assim, privilegia-se o Estado-acusação e o direito de acusar em detrimento do sagrado direito de defesa, que se vê ainda mais fragilizado. 

A terceira, de ordem ética. Aprendi que à defesa não cabe “instruir” suas testemunhas para vencer a causa. Conforme Roberto Lyra, não deve a defesa vir aos autos com “testemunhas de cativeiro”. Assim, caso tenha a defesa que indicar o que cada testemunha irá falar no processo, necessariamente, deverá se reunir com a mesma e tomar-lhe um testemunho (mesmo que não escrito).

E quem milita na área criminal sabe que é comum a testemunha, caso tenha conversado com o defensor antes da audiência, socorre-se do mesmo em um momento de “aperto” no ato judicial. E isso, lamentavelmente, gera um enorme desconforto perante o juiz (que é o destinatário da prova). Mesmo que o defensor não tenha orientado a testemunha neste ou naquele sentido, a impressão que passa é de que isso ocorreu; com isso, por via consequência, o testemunho perde sua credibilidade.

Infelizmente, vivemos tempos sombrios. Tempos em que as garantias fundamentais são enxergadas como empecilhos para a realização da “Justiça”. O processo penal, na visão de muitos operadores do direito, virou um faz de conta, um entrave, algo que deve ser utilizado unicamente como instrumento de punição (v.g. prisão preventiva, busca e apreensão, sequestro de bens etc.).

Retornando ao nosso tema sobre o indeferimento das testemunhas arroladas pela defesa pela ausência de justificação do que a mesma irá dizer. Lamentavelmente os Tribunais têm se posicionado no sentido de que o direito à prova não é absoluto, devendo o magistrado fazer uma ponderação com a garantia da razoável duração do processo. 

Em suma, utiliza-se um garantia do cidadão (razoável duração do processo) para negar outra garantia do acusado (ampla defesa). Em nome da eficiência e um processo penal fast food nega-se à defesa o direito de produzir sua prova. Triste realidade que o cidadão brasileiro está vivenciando.

Essa é mais uma das misérias do processo penal, que, infelizmente, vêm aniquilando com o sonho de um instrumento democrático para concretização da tão almejada JUSTIÇA!!!

Porém, ainda há juízes em Berlim. No HC nº 155.363/RJ, a Segunda Turma do STF concedeu a ordem de ofício para assegurar a oitiva das testemunhas arroladas pela defesa.

O julgado em questão foi assim ementado:

Habeas corpus. Constitucional. Processual Penal. Oitiva de testemunhas arroladas em fase de defesa prévia (CPP, art. 396-A). Indeferimento. Alegado cerceamento de defesa. Impetração dirigida contra decisão monocrática com que o relator do habeas corpus no Tribunal Superior Eleitoral a ele negou seguimento. Não exaurimento da instância antecedente pela via do agravo regimental. Apreciação per saltum. Supressão de instância. Não conhecimento da impetração. Precedentes. Existência de ilegalidade flagrante a amparar a concessão da ordem de ofício. Indeferimento de todas as testemunhas arroladas pela defesa. Frustrada a possibilidade de os acusados produzirem as provas que reputam necessárias à demonstração de suas alegações. Infringência à matriz constitucional da plenitude de defesa (CF, art. 5º, inciso LV) e do due process of law (CF, art. 5º, inciso LIV). Decisão que, à luz do princípio do livre convencimento motivado, extrapolou os limites do razoável. Ordem concedida de ofício. 1. Habeas corpus impetrado contra decisão monocrática mediante a qual o relator do writ no Tribunal Superior Eleitoral a ele negou seguimento, invocando o verbete nº 691 deste Supremo Tribunal e apontando a deficiência na sua instrução. Logo, a apreciação do tema, de forma originária, pelo STF configuraria inadmissível supressão de instância. 2. Como se não bastasse, é inadmissível o habeas corpus que se volte contra decisão monocrática não submetida ao crivo do colegiado por intermédio do agravo interno, por falta de exaurimento da instância antecedente. 3. Habeas corpus do qual não se conhece. 4. As circunstâncias expostas nos autos, todavia, encerram situação de constrangimento ilegal apta a justificar a concessão da ordem de ofício. 5. O princípio do livre convencimento motivado (CPP, art. 400, § 1º) faculta ao juiz o indeferimento das provas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias (v.g. RHC nº 126.853/SP-AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 15/9/15). 6. Não obstante o indeferimento de todas as testemunhas de defesa, à luz desse princípio afigura-se inadmissível em um estado democrático de direito, em que a plenitude de defesa é garantia constitucional de todos os acusados (CF, art. 5º, inciso LV). 7. Decisão que extrapola os limites do razoável, mormente se levado em consideração que a medida extrema foi tomada em estágio inicial do processo (defesa prévia) e a motivação para tanto está consubstanciada tout court na impressão pessoal do magistrado de que o requerimento seria protelatório, já que as testemunhas não teriam, em tese, vinculação com os fatos criminosos imputados aos pacientes. 8. Evidente infringência à matriz constitucional do due process of law (CF, art. 5º, inciso LIV), visto que frustrou a possibilidade de os acusados produzirem as provas que reputam necessárias à demonstração de suas alegações. 9. Habeas corpus concedido de ofício para assegurar a oitiva das testemunhas arroladas pela defesa dos pacientes.

Em resumo, o processo é justamente o lugar de fala da defesa, onde ela poderá explicar e rebater as imputações. Negar o direito de ouvir testemunhas é rejeitar a existência de um processo penal democrático. A prevalecer o entendimento de que a defesa tem o ônus de demonstrar a pertinência da prova oral estar-se-á desequilibrando o jogo processual.

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