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Crônica de uma morte anunciada: o agonizante fim da triste saga do HC 126.292

Crônica de uma morte anunciada: o agonizante fim da triste saga do HC 126.292?

Um dos mais tristes capítulos da história do Supremo Tribunal Federal aconteceu quando da decisão final no HC 126.292. A doutrina nacional e estrangeira fez ressoar um estrondoso discurso de reprovação do que ali ficou estabelecido – a quebra do estado de inocência, em desconformidade com o claro enunciado do art. 5º, LVII da CF/88.

De todos os lados em que se analise a decisão, os absurdos saltam à vista. Muito foi escrito a respeito. Tive a oportunidade de ler todos os votos e em diversas ocasiões escrevi a respeito.

Recentemente, novas manifestações dos ministros fizeram reascender a discussão.

Não se pretende aqui repisar os muitos argumentos que demonstram que a decisão tomada pelo STF é ilegítima, dogmaticamente equivocada e hermeneuticamente incoerente e inconsistente.

O fato é que, desde o dia seguinte ao da decisão, defendi que seria muito difícil o STF manter este posicionamento por muito tempo. A decisão possui um elemento político muito forte e conseguirá se manter durante a “cruzada” contra a corrupção que está em curso, de modo a permitir que alguns personagens alcem os voos em que se pretenderam lançar nesta lamentável novela populista.

Passada a tempestade, diante da primeira “respirada” democrática as coisas deverão retornar a um mínimo de coerência integrativa. Assim espera-se. Não será sem ter operado efeitos colaterais sensíveis e sem deixar a marca de um dos episódios mais lamentáveis de fragilidade democrática e imaturidade jurídica na história de nosso país.

Para tornar este acontecimento ainda mais vergonhoso, o Min. Fux tentou salvar o posicionamento original calcando sua legitimidade no “sentimento constitucional do povo”. Sem comentários pessoais sobre este impropério. Registro, no entanto, a irretocável observação do prof. Gustavo Badaró em sua página na rede Facebook:

Portanto, direciono-a, igualmente, ao Ministro Fux: ao defender que a presunção de inocência não se aplique até o trânsito em julgado, invocou como fundamento que "não está de acordo com o sentimento constitucional do povo"! Logo logo, Sua Excelência defenderá que uma conduta precisa ser considerada crime porque "ofende o são sentimento do povo brasileiro"! Só faltará termos um Führer para interpretar o sentimento do povo e nos guiar por ele! E, agora complemento a crítica, indagando ao ministro sensível ao sentimento do povo: será que está de acordo com o "sentimento constitucional do povo" o auxílio moradia da magistratura?

Diante desse quadro, acredita-se que o posicionamento do STF esteja com os dias contados. Nasceu assim – para servir a um momento político específico e se desvanecerá diante do massivo constrangimento epistemológico interno e externo. Mais uma vez: assim espera-se.

Com o fim de contribuir com os apontamentos acerca do enorme desacerto dos argumentos exarados na tentativa de legitimar a decisão, discorre-se a seguir brevemente sobre um dos pontos mais sensíveis da discussão – a possibilidade de “interpretação”, pelo STF, do conceito “trânsito em julgado”.

Ao STF não é dada a liberdade para alterar o conteúdo semântico de termos sobre os quais não existem controvérsias, uma vez que são fruto de consenso histórico, compartilhado pela comunidade em que estes conceitos foram forjados. Como bem aponta Aury Lopes Jr (2017: 23)

quando o Brasil foi descoberto, em 1500, o mundo do processo já sabia o que era trânsito em julgado.

Na realidade, “trânsito em julgado” não é um objeto ou fenômeno empírico; não é nem mesmo uma abstração utilizada para descrever algo dado pelo mundo “natural”, como “árvore” ou “mar”.

Antes, trata-se de uma expressão que descreve um estado de coisas forjado pelos homens dentro de um contexto social bem específico, ou seja, o mundo jurídico ou, mais precisamente, o “mundo do processo”.

Significa dizer que só se pode obter o significado de “trânsito em julgado” a partir do conhecimento do uso consensual deste termo no contexto em que ele foi forjado e com o sentido que se atribui a ele pelos participantes do ambiente comunicativo em que ele costuma ser utilizado.

Em outras palavras, só posso chegar ao conhecimento do que significa “trânsito em julgado”, olhando para seu uso no meio social em que ele possui um sentido compartilhado pelos atores que lançam mão deste conceito de modo harmônico.

O termo “trânsito em julgado” aparece em diferentes espaços do arcabouço legislativo nacional (e até internacional, guardadas as devidas proporções).

Buscando caminhar para a conclusão desta linha de raciocínio, pensemos num exemplo do Código de Processo Civil vigente, com o fim de demonstrar que o significado deste conceito é estável: define o ponto final de toda a discussão passível de apreciação pelo Poder Judiciário, ou seja, o momento em que não cabem mais recursos; em que deve haver a submissão democrática ao direito, ainda que uma das partes possa considerar que sua percepção subjetiva de justiça tenha sido violada.

Tal submissão opera como corolário do Estado de Direito.

O artigo 537, parágrafo  3º, do CPC/2015 dispõe:

Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.
(...) §3º A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte.

O tema de que trata o art. 537 diz respeito ao cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de fazer ou de não fazer. Ele atribui ao juiz a possibilidade de decretar as medidas necessárias para satisfazer a pretensão do exequente.

Especificamente neste artigo se clarifica a permissão de que a multa, como meio de efetivação do direito pleiteado, seja exigida de ofício, em quantidade e prazo de cumprimento razoável.

O que mais nos interessa neste momento é o que determina o parágrafo terceiro. Nele se estabelece a possibilidade de cumprimento provisório da decisão que aplica a multa, através de depósito em juízo, podendo o valor ser levantado após o trânsito em julgado.

Interessa perceber que, neste artigo, como em todo o restante de nosso ordenamento, fixa-se uma separação clara entre dois momentos processuais, a saber, o momento após a decisão judicial (monocrática ou colegiada) e o trânsito em julgado.

Não fosse assim, não faria o menor sentido a determinação de que houvesse depósito em juízo, com a mera possibilidade de levantamento do valor após o trânsito em julgado.

Já se poderia pleitear o levantamento de imediato, condicionando a devolução do mesmo a qualquer mudança que viesse ocorrer por força do julgamento de um recurso especial ou extraordinário.

Com esses breves apontamentos, que fazem eco a toda uma extensa produção voltada ao objetivo de revelar os graves equívocos da decisão do STF no HC 126.292, pretende-se afirmar que não há saída juridicamente possível para legitimar o entendimento que restou vitorioso e que ainda está em vigor.

Espera-se, o quanto antes, uma drástica alteração, ou então que se assuma de modo despudorado trata-se de uma decisão de cunho estritamente político – aí ao menos poderemos juntos cantar o réquiem do Estado de Direito e trabalhar com o que quer se suceda a isso.


REFERÊNCIAS

LOPES JR, Aury. Prisões Cautelares. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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