Crucificação e a banalização da violência legitimada


Por Iverson Kech Ferreira


Crucificar pode ser entendido como uma “arte”, pois a dificuldade de tal ato é tremenda. Colocar o corpo quase morto do condenado em um tripalium preso ao chão, ou, pregar-lhe um cravo em cada pulso e depois outro juntando os pés é um oficio para poucos. Em Roma, dando um salto na história, sem passar pelos meandros do empalamento e sua construção que transformou-se em outras maneiras de penalização final, como a crucificação, era comum ver prisioneiros em seu infortúnio final agonizando entre meio ao cidadão comum, que transitava as ruas escolhidas para o espetáculo. O julgamento, o flagelo e a execução eram as fases do procedimento romano, todavia, apenas para aqueles que eram sentenciados como inimigos do Estado ou que fossem considerados ameaça ao César, em pessoa. Não era qualquer crime cometido que levava o individuo á cruz, mas aqueles que realmente precisavam ser usados como demonstração do poder do Estado e que esse, por seu imperador, era soberano e divino.

Todavia, antes de Roma, escritos trazem o rei da Macedônia, Alexandre o Grande em 332 A.C.,  quando em sua ocupação que durou sete meses sobre Tyro, na Fenícia, onde finalmente conseguiu adentrar os muros da cidade, teria crucificado duas mil pessoas. O rei da Pérsia, Dario I, em 518 A.C.,  em uma rebelião popular na Babilônia, teria, por sua vez, crucificado três mil babilônios para que servissem de exemplo.

Voltando ao Império de Roma, em 71 A.C, numa rebelião que ficou conhecida como a Terceira Guerra Servil ou Guerra dos Gladiadores, liderada por Espartaco, cerca de seis mil rebeldes foram crucificados no fim dos conflitos em toda a Via Áppia, caminho que levava a cidade romana até Cápua, numa franca demonstração de poder e intransigência do Estado. É importante aqui lembrar que a rebelião que lutava por liberdade humana levou seus cercos a uma proximidade muito grande á maior capital do mundo até então e esse atrevimento teria que ser quebrado com um grande exemplo.  No primeiro século D.C., na ocupação da Judéia, o ato de crucificar era comum e as tropas romanas passaram então a utilizar de tal ato para torturar seus inimigos bárbaros ou cidadãos que não se identificariam com Roma, num período de banalização do ato de crucificar, onde qualquer um poderia ser o inimigo e dessa forma, pregado numa cruz.

Com o passar dos tempos as tortuosas formas de matar foram aprimoradas: cadeiras elétricas, pelotão de fuzilamento, câmaras de gás, fornos, venenos intravenosos, todos, bem como a crucificação ou o empalamento, com o intuito de demonstração de força e legitimação do poder do Estado que toma para si o arbítrio sobre questões de vida ou de morte.

O sofrimento da cruz era intenso, uma vez que o condenado teria, após o flagelo que era realizado por chicotes onde em suas pontas eram amarrados pedaços de pregos e ossos pontiagudos que dilaceravam a carne, que ser amarrado ou pregado, como o caso de Cristo, numa viga em forma de T. Tal amarração forçava os pulmões, comprimia o ar e, lentamente, o condenado morria sufocado. Com o passar dos tempos notaram os carrascos que a dor do corpo não demonstrava-se suficiente para que a alma fosse purificada, criando então utensílios para que a vida se agarrasse mais ao corpo e não o deixasse tão cedo, aumentando o martírio do condenado na cruz. Assim criaram um suporte para os pés da vitima, que não sufocava, mas morria de inanição e das chagas que teria recebido em seu flagelo, anterior à crucificação.

Todavia, o império romano utilizou tal ato para demonstrar que não seriam toleradas as contrariedades á sua forma de vida e ao seu poder, numa franca demonstração de força, séculos atrás. Mas séculos atrás passaram, não há que se falar nisso. Errado.

Mesmo que os números sejam controversos, entre mortos e mutilados, o Holocausto, em nossa época e período atual, também teve por questão essencial a demonstração da força do poder do Estado e a sua intransigência perante situações que não aceitaria, como a força econômica do povo Judeu e todas as diferenças físicas que levaram ao extremismo do ódio e do racismo. A morte na câmara de gás ou nas fornalhas, mesmo no interior dos muros nos campos de concentração e sua angustia, pode ser traduzida pela espera nas filas de condenados, que aguardavam seu momento final numa excruciante e ultima experiência de vida.

Chegando a nossa atualidade, a crucificação é iminente e certa, uma vez que inúmeros atos de flagelo inimagináveis ainda são praticados. O ISIS, grupo extremista Estado Islâmico do Iraque e do Levante, traz torturas infelizes e atos atrozes ao cotidiano. Muitas vezes, um mesmo condenado é levado frente às câmeras para sua execução final que não chegaria, com uma faca em sua garganta, o moribundo espera o corte fatal, mas, após as gravações, era posto de volta em cativeiro. Isso é tortura. Ainda há aqueles que afogam repórteres ocidentais ou que queimam crianças juntas de seus pais cristãos, numa maneira de demonstrar força e poder. Todavia, é o Estado Islâmico.

Em Guantanamo, Cuba, a 645 Km de Miami, inúmeras pessoas que possuem características muçulmanas, após o 11 de Setembro de 2001, são levadas ao cárcere e lá, muitas aflições como perecer ao sol vestindo roupas quentes, amarrados, e em outras vezes, proibidos a ver a luz do sol ou de dormir, por períodos longos e excruciantes.  As surras, de acordo com um prisioneiro, duravam horas e eram realizadas por três vezes ao dia, todos os dias, com a legitimação dos Estados Unidos da América, entre 2002 e tempos atuais.

São dores e flagelos causados, todos esses, pela legitima ação do homem validada pelo seu ente maior em sociedade, o Estado. De fato, inúmeras seriam as conclusões que chegaríamos em casos como o ISIS, mas esse também, é legitimado por alguns Estados da região que, ratificam os atos terroristas. Não estuda-se nesse ponto, questões de tribos e suas aferições culturais que levam ao extremo da dor humana, como os dilaceramentos dos órgãos genitais femininos ainda na infância ou, os costumes atuais de certas tribos em marcar os seus com ferro e brasa. O que nos importa de fato é trazer a discussão de como tanto flagelo pôde ter sido causado em nome do Estado e da soberania deste, e como ainda nos dias de contemporaneidade, esses mesmos suplícios são vistos, publicados e legitimados ainda pelo Estado em sua soberania e em seu poder, tentando demonstrar uma deificação que não existe, um medo que não deve morrer.

A violência é parte do humano, desde seu inicio, e num intervalo de meia hora é toda posta á mesa da dona de casa nos jornais do mundo, antes da novela das nove.

Com a violência exagerada também veio a sua banalização, pois é corriqueiro morrer de morte matada por faca ou tiro, pobre do infeliz que estava em lugar errado e na hora errada. A banalização fez da cruz o símbolo de uma única sexta-feira, onde não se pode ingerir carne e deve ser guardada a reflexão, não mais que apenas isso. É simples, vulgar e démodé morrer na cruz nos dias de hoje. Nada mais parece nos afetar, entre uma novela e outra, vemos o resumo do mundo e rezamos para que este continue apenas nas outras paragens, no Oriente ou nas Arábias.  A crucificação hoje virou parte da sociedade do espetáculo, que, diante a tantas outras formas de tortura jaz banalizada, mas ainda assim temporal, desnecessária e perigosa.


REFERÊNCIAS

SLAHI, Mohamedou. O diário de Guantánamo. São Paulo: Saraiva, 2014.

Iverson