A culpa e o dolo eventual
A culpa e o dolo eventual
Introdução
No plano da tipicidade penal, deve-se analisar, fundamentalmente, a conduta, o nexo de causalidade e o resultado, quando se tratar de crime materiais, ou seja, aqueles cuja consumação depende da ocorrência de um resultado naturalístico.
No âmbito da conduta, examinam-se os elementos objetivo-descritivos, aqueles cuja compreensão não exige um juízo de valoração (v.g., “matar”, “alguém”, “outrem”, “arma de fogo”) e os objetivo-normativos ou axiológicos, aqueles cuja compreensão exige um juizo de valoração (v.g., “injusta”, “vantagem”, “fraudulentamente”, “temerária”).
Ao lado desses, há os elementos chamados “subjetivos”, pertinentes à vontade deliberativa do agente, ao seu agir finalisticamente dirigido. Trata-se, pois, do dolo, eminentemente psíquico, formado na mente do agente, e da culpa, de cunho normativo, avaliada a partir de um juizo acerca da inobservância de um dever objetivo de cuidado concretamente revelado pela imprudência, negligência ou imperícia.
Na postagem de hoje, o objetivo é apenas chamar a atenção para a necessidade de fazer-se uma análise percuciente sobre o discurso que fundamenta a imputação subjetiva, precisamente quando a narrativa, pelas expressões que emprega, parece tratar de uma conduta culposa, quando, em verdade, tem-se um comportamento de assunção do risco, ou seja, dolo eventual. Para tanto, tome-se como objeto de análise o RESP 1613260/SP[1].
Brevíssima contextualização dos crimes contra o sistema financeiro nacional
Os delitos financeiros ganham especial relevância com a emergência de uma sociedade fortemente influenciada pelo fenômeno da globalização e consequente fragmentação das barreiras territoriais.
De acordo com SILVA-SÁNCHEZ (2001), com as crescentes necessidades de uma sociedade cada vez mais complexa, houve uma considerável expansão do Direito Penal, sobretudo nas últimas décadas, o qual passou a prever uma série de delitos socioeconômicos, a fim de tutelar bens jurídicos como o sistema financeiro e a higidez dos mercados.
No Brasil, a lei 7.492/1986 tipificou uma série de delitos contra o sistema financeiro nacional, dentre os quais o delito de “gestão temerária”, previsto no parágrafo único do artigo 4º (“Se a gestão é temerária: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa”).
Depreende-se da leitura do tipo penal que a descrição da conduta é excessivamente vaga e imprecisa, o que colide frontalmente com o princípio constitucional da legalidade, especificamente no subnível da taxatividade.
A imputação subjetiva no delito de “gestão temerária”
A imputação subjetiva no delito de “gestão temerária” é extremamente complexa, pois o vago elemento normativo “temerária” suscita incursões não apenas no plano da tipicidade, mas também no âmbito da ilicitude. Essa justaposição de elementos dificulta, e muito, a precisa e rigorosa imputação subjetiva exigida pelo devido processo penal constitucional.
Além do caráter de habitualidade, pois não existe gestão em um só ato, é necessário que o gestor pratique condutas arriscadas de maneira não recomendável, com grande probabilidade de resultados prejudiciais; no entanto, tais condutas arriscadas não se confundem com mera imprudência ou negligência, tendo em vista a ausência de previsão da modalidade culposa da gestão temerária.
O elemento subjetivo do tipo é o dolo, não havendo previsão do elemento normativo culpa. Trata-se, em regra, do dolo eventual, quando o agente não deseja diretamente o resultado, mas assume o risco de produzi-lo.
No dolo eventual, o agente prevê, num grau altíssimo de probabilidade, a ocorrência do resultado danoso e, mesmo diante disso, não retrocede em seus passos, prosseguindo na ação com absoluta indiferença. Já no dolo direto, o agente quer o resultado como uma consequência direta e certa de sua ação. Portanto, o crime pode ocorrer a título de dolo, apenas, seja ele direto, seja ele eventual[2].
Brevíssima e pontual análise da decisão do STJ no RESP 1613260/SP
Feitas as considerações preliminares, passa-se à brevíssima análise de acórdão do Superior Tribunal de Justiça, assim ementado:
PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. CONDENAÇÃO EMBASADA EM PROCESSOS ADMINISTRATIVOS SANCIONADORES DA ANTIGA BOVESPA E DO BANCO CENTRAL. CONTRADITÓRIO DIFERIDO. COTEJO COM PROVAS PRODUZIDAS EM JUÍZO. VIABILIDADE. GESTÃO TEMERÁRIA. CRIME DOLOSO. TEMERIDADE COMO ELEMENTO VALORATIVO GLOBAL DO FATO. DOLO COMO CONSCIÊNCIA E VONTADE DE VIOLAÇÃO DAS REGRAS REGENTES DA ATIVIDADE FINANCEIRA. DOSIMETRIA. PENA-BASE. CULPABILIDADE. VALORAÇÕES NEGATIVAS COM BASE EM ELEMENTARES DO TIPO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. […] 5. A temeridade da gestão é elemento valorativo global do fato (Roxin) e, como tal, sua valoração é de competência exclusiva da ordem jurídica e não do agente. Para a caracterização do elemento subjetivo do delito não é necessária a vontade de atuar temerariamente; o que se exige é que o agente, conhecendo as circunstâncias de seu agir, transgrida voluntariamente as normas regentes da sua condição de administrador da instituição financeira. [...] (REsp 1613260/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016) (grifos nossos).
Quando o legislador lança mão dos elementos de valoração global do fato [ aqueles que justapõem juízos de tipicidade e ilicitude], como o “temerária” do tipo penal ora analisado, basta, para uma ação dolosa, que o sujeito possua conhecimento dos substratos fáticos, fundamentadores do dever (LEITE, 2018).
Nesse sentido parece entender o Superior Tribunal de Justiça, mesmo que não o faça de maneira tão clara, ao dizer que se tem por imprescindível a transgressão de normas regentes da condição de administrador da instituição financeira, tais como as veiculadas por órgãos como o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários, que disciplinam a gestão de instituições financeiras, conjugada com o conhecimento das circunstâncias do agir.
Pugna o Superior Tribunal de Justiça pelo dolo eventual, pois o agente tem o conhecimento técnico para alcançar a representação de que a sua ação possui a altíssima probabilidade de ser temerária, mesmo que resultante de valoração final errônea, o que poderia levar, em tese, ao erro de proibição.
Logo, resta fora do dolo do agente a valoração definitiva do fato como temerário, mas a sua representação e o seu elemento volitivo devem recair sobre as circunstâncias materiais da conduta, bem como sobre os pressupostos do elemento a ser valorado pelo julgador (as normas regentes da função que desempenha na instituição financeira).
Entendeu o Tribunal que a qualificação de uma gestão como “temerária” depende de sua caracterização como ilícita, uma vez que o elemento normativo “temerária” justapõe o juízo da ilicitude ao juízo da tipicidade. Todavia, para que seja caracterizado o dolo, é irrelevante que o agente valore, de maneira definitiva, o caráter temerário de seu agir, bastando a representação da altíssima probabilidade do resultado danoso, a dar ensejo ao dolo eventual.
A referência à gestão como imprudente e arriscada, segundo o entendimento adotado pelo STJ no RESP em tela, não afastou a elementar “temerária”, tratando-se tão somente de atecnia do Tribunal a quo, que caracterizou o dolo – demonstrado no caso concreto – por meio de expressões dogmáticas que, comumente, fazem alusão ao delito culposo.
Conclusão
Portanto, quando se depara com os chamados elementos de valoração global, como o “temerária”, requer-se um estudo muito mais aprofundado quanto à imputação subjetiva (dolo ou culpa), às hipóteses de exclusão da ilicitude e da culpabilidade, ao erro de tipo e de proibição, de modo que sejam elaboradas peças processuais que primem pelo uso técnico e escorreito das expressões e categorias dogmáticas.
No plano técnico-jurídico-penal, o elemento normativo “temerária”, embora seja sinônimo de “imprudência”, não pode ser tomado como um dos elementos caracterizadores da “inobservância do dever objetivo de cuidado” e, por conseguinte, levar à configuração de uma conduta culposa. Entretanto, não resta dúvida de que a técnica legislativa empregada foi extremamente imprecisa e vaga, o que afronta o princípio da legalidade.
NOTAS
[1] A análise desse julgado foi realizada juntamente com os acadêmicos Carolina Guimarães Ayupe e Hugo Vidigal Ferreira Neto, acadêmicos do 9º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG e faz parte de uma pesquisa maior sobre o crime de “gestão temerária”.
[2] Vale ressaltar a posição de CABRAL (2018, p. 565), o qual analisando a doutrina estadunidense entende que: “o mais adequado para compreender a caracterização da tipicidade subjetiva do delito em questão é a inovação do conceito de temeridade […]. A temeridade anglo-saxã é uma forma de imputação subjetiva intermediária entre o dolo eventual e a imprudência (culpa)”. Entretanto, ressalta-se que, apesar de ser posição intermediária entre dolo eventual e imprudência, o autor ainda qualifica a temeridade como dolo.
REFERÊNCIAS
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Sistema Financeiro Nacional – Lei 7.492/1986. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA Renee do Ó (coords.). Leis penais especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.
LEITE, Alaor. Dolo e erro nos delitos de infidelidade patrimonial e administração danosa: violação do dever como elemento misto – ora em branco, ora da valoração global do fato – do tipo? In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza (Orgs.). Comentários ao direito penal econômico brasileiro. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2ª edição. Madrid: Citivas Ediciones, 2001.
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