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Interseções entre culpa, dolo e a teoria da cegueira deliberada

Interseções entre culpa, dolo e a teoria da cegueira deliberada

Com discussões atuais acerca dos crimes econômicos, alguns dos temais mais abordados inserem-se na responsabilização do agente no meio corporativo, na necessária diligência desses aos riscos de atividade e, ainda, em estratégias para reduzir a ocorrência dos riscos, os quais, no presente artigo, serão envoltas nos riscos criminais.

Através disso, realizar-se-ão breves aportes sobre temas previamente enfrentados na parte geral do Direito Penal, como dolo e culpa, bem como a questões correlacionadas e vistas com estudos mais aprimorados sobre esta linha, como a teoria da cegueira deliberada. Com isso, o leitor, ao se ver dentro do cenário dos crimes corporativos, passará a deter de questionamentos atualmente enfrentados.

Contudo, o artigo em questão não trará respostas, buscando somente o fomento da discussão e aprimoramento dos argumentos, haja vista tendentes mudanças para o expansionismo do Direito Penal, mudanças legislativas e jurisprudenciais significativas e existência de casos cada vez mais complexos.

Primeiramente, incumbe definir sobre o que consiste cada um destes. Em uma análise simplificada, a culpa (descrita no Art. 18, II, do código penal brasileiro) consiste na ocorrência de um resultado por imprudência, negligência e imperícia, ou seja, quando há um risco presumível, mas não desejável.

Cumpre destacar, permeando aqui o cenário brasileiro, que somente há culpa em delitos que permitam a modalidade culposa, o que não é o caso do furto, por exemplo, mas sim no delito de homicídio.

Já o dolo é tido como a vontade do agente em praticar conduta típica, com a finalidade em chegar ao resultado pretendido. Ele é mais complexo que a culpa e, por isso, somente se elencará que suas espécies são: a) determinado; b) indeterminado (subdividido em alternativo e eventual); c) de dano, d) de perigo; e) especifico e; f) genérico;

Dando foco a um dos temas de discussão, o dolo eventual é aquele cujo sujeito não deseja o resultado, mas o aceita se esse vir a ocorrer, agindo, portanto, com certo consentimento acerca dos riscos, mas deseja praticar a conduta de igual forma.

Teoria da cegueira deliberada

Com isso, passando a contextualizar a teoria da cegueira deliberada (willful blindness), cabe destacar que ela consiste no desinteresse em saber detalhes sobre algum fato que esteja acontecendo, buscando, assim, evitar uma possível responsabilização, tal qual um avestruz faz ao colocar sua cabeça em um buraco.

Com isso, o que é possível perceber preliminarmente é que a linha entre uma ou outra é tênue e, posto isso, as aplicações devem ser realizadas após detalhados estudos sobre o caso em concreto.

A problemática envolta nessas está adstrita ao ramo corporativo, principalmente, mas também pode ocorrer em delitos de tráfico de drogas, por exemplo.

Sob o aspecto do ambiente corporativo, não é forçoso reconhecer os riscos criminais inerentes às atividades e, desse modo, a cultura atual volta-se a prevenção e endurecimento das responsabilizações por crimes de corrupção lato sensu.

Por esta razão, gerou-se um dever ainda maior sob o aspecto preventivo, aumentando o dever de diligência de superiores hierárquicos, gestores e compliance officers. Nesse sentido, percebe-se um aumento constante dos programas de conformidade, utilizados para amoldar a empresa nos parâmetros de transparência e integridade, visando a reduzir a criminalidade no ambiente corporativo.

Outrossim, movimentos internacionais sobre o combate à corrupção trouxeram à tona discussões sobre a aplicabilidade da cegueira deliberada em crimes econômicos, principalmente o de lavagem de dinheiro.

Sabe-se que a lavagem de dinheiro não admite a modalidade culposa e, sendo assim, também pode ser errôneo aplicar dolo eventual e utilizar a teoria da cegueira deliberada, haja vista que, em alguns casos, exige-se somente dolo direto.

As origens do willful blindness são provenientes do direito penal americano, onde não se distingue dolo e culpa, bastando existir somente a mens rea (mente culpada), que não é nada mais que a obrigatoriedade de um elemento subjetivo do crime.

Além do mais, uma das classificações da mens rea, denominada de knowledge é a comumente utilizada com a aplicação da teoria da cegueira deliberada. Contudo, ela não é nem por definição, semelhante ao dolo eventual. Bem como a própria mens rea é destoante do dolo direto, eventual – como dito anteriormente – e até mesmo a culpa em sua modalidade consciente e inconsciente.

Nesse diapasão, como a maioria das criticas realizadas pela doutrina brasileira, não se pode inserir uma teoria aplicável no ambiente do common Law, com raízes anglo-americanas, para um Direito Penal de cultura romano-germânica, as bases são distintas, o que careceria de aplicações forçosas ou de alterações significativas no direito penal brasileiro em sua parte geral.

Forçoso reconhecer o dolo eventual em situações de prática de lavagem de dinheiro e, através desse, aplicar a teoria da cegueira deliberada. No ambiente criminal brasileiro já é difícil perceber e provas a ocorrência do dolo eventual e é ainda mais difícil perceber – de forma amplamente motivada – a possibilidade de aplicação de uma teoria que se enquadra somente nos moldes do knowledge (o qual sequer existe similar no Brasil).

Ainda, conforme aduz Guilherme LUCCHESI (2018), para caracterizar o dolo se faz necessário ter ciência dos elementos do tipo e, portanto, nos casos de o agente não ter conhecimento de todas as elementares, como no caso de um gestor que não sabe a prática de lavagem em certo estabelecimento empresarial, há o afastamento do dolo, o que pode ensejar a modalidade culposa que, por sua vez, exige previsão legal expressa e, nesse ponto, o delito de lavagem de dinheiro não admite a modalidade culposa.

Concluindo, a aplicação da teoria da cegueira deliberada no Brasil seria um forte reflexo do expansionismo do Direito Penal, pois ampliaria as formas de imputação subjetiva, podendo a agredir diretamente ao princípio da legalidade.

Sendo assim, diante dos reflexos provenientes do combate internacional aos delitos de corrupção, quais sejam o endurecimento de sanções, responsabilizações aplicadas às pessoas jurídicas e instituição de programas de compliance, incumbe aos gestores buscar formas de prevenir a criminalidade corporativa, evitando, por exemplo, responder criminalmente por lavagem de dinheiro, mesmo desconhecendo a prática.

Por fim, consigna destacar que o presente artigo buscou explicar de forma prévia e traçar linhas argumentativas gerais sobre as formas de imputação e a teoria da cegueira deliberada, abrindo espaço para que o leitor possa acompanhar demais artigos sobre tais temas.


REFERÊNCIAS

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons. 2018.


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Suzana Rososki de Oliveira

Advogada criminalista

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