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A cultura do controle de David Garland

A cultura do controle de David Garland

A releitura de uma das obras de David Garland, no caso a chamada A cultura do controle. Crime e ordem social na sociedade contemporânea (2008), revela-se de fundamental importância para o contexto atual que vivenciamos.

É certo que Garland se deita sobre os contextos dos Estados Unidos e da Inglaterra, nos chamando atenção para as relações, bem como para as mudanças no controle do crime nos modos de sociabilidade da vida contemporânea, o que chamou de ‘Cultura do Controle’.

É que em sua obra, Garland tenta demonstrar como o campo do controle do crime e da justiça criminal foi afetado pelas mudanças na organização social das sociedades em que opera, pelos problemas específicos de ordem social característicos daquela forma de organização social e por adaptações políticas, culturais e criminológicas que sobrevieram em resposta àqueles problemas específicos.

Nesse ponto, é inegável a reconfiguração produzida no mundo pelo estágio atual do capitalismo e pela disseminação do neoliberalismo. Além, é claro, das alterações promovidas na ordem social no contexto posterior da modernidade.

Através de uma reconstrução histórica e da análise desses dois contextos postos pelo autor, os EUA e a Inglaterra, Garland dá conta de que às políticas que emergiram nas décadas recentes, nesses países, têm suas raízes numa nova experiência coletiva do crime e da insegurança. Experiência estruturada pelos arranjos sociais, econômicos e culturais singulares do que conceitua por pós-modernidade.

A fim de resumir esse processo histórico, Garland afirma que uma formação cultural se ergueu em torno dos fenômenos das altas taxas de criminalidade e da insegurança crescente, e que esta formação agora confere à experiência do crime uma consolidada forma institucional.

A essa formação cultural, chama de ‘Complexo do Crime da pós-modernidade’, a qual é caracterizada por um conjunto específico de atitudes e crenças: altas taxas de criminalidade são tidas como um fato social normal; o investimento emocional no crime é disseminado e intenso, abrangendo elementos de fascinação como também de medo, raiva e indignação; temas criminais são politizados e regularmente representados em termos emotivos; a preocupação com as vítimas e com a segurança do público dominam as políticas públicas; o sistema penal é visto como inadequado ou ineficaz; rotinas defensivas privadas são comuns, existindo um grande mercado de segurança privada; a consciência do crime está institucionalizada na mídia, na cultura popular e no ambiente circundante.

Garland, então, nos esclarece que o ‘Complexo do crime’, a bem da verdade, trata-se de uma visão de mundo que não se altera rapidamente, pois não é muito afetada por mudanças anuais nas taxas de crime, mesmo nos casos de redução.

É que nossas atitudes para com o crime, de acordo com ele, nosso medo e indignação e nosso senso comum, se tornam fatos culturais estabelecidos, que são sustentados e reproduzidos por roteiros culturais e não pelos dados oficiais ou pela pesquisa criminológica.

E esse desenvolvimento do ‘Complexo do crime’, de acordo com o autor, acarreta uma série de efeitos psicológicos e sociais que exercem influência na política, produzindo uma reação ambivalente.

Conforme bem aduz Campos (2010), para Garland, nos contextos dos EUA e da Inglaterra, os quais se propõem a analisar, há um uso maior e mais constante do encarceramento, entretanto, a ampliação dos discursos e das formas de controle do crime não representou uma transformação das formas institucionais, tampouco se abandonaram as velhas práticas nesse sentido, na verdade, de acordo com o autor, a transformação do aparato da justiça penal se deu no seu funcionamento estratégico e na importância social.

Nesse sentido, Campos (2010) exporá com muita propriedade que Garland irá observar que a partir dos anos 1990, as políticas criminais assumirão uma dimensão de severidade, na qual o Estado exerce papel primordial, compreendendo o que intitula como a ‘Criminologia do Outro’, em evidente colocação do dito então ‘criminoso’ como um inimigo, uma não-pessoa.

Mas a ‘Criminologia do Outro’ não se separa da ‘Criminologia da Vida Cotidiana’, conforme Garland (2009), ou seja, em conjunto também há a divulgação da ideia de que todos os membros da sociedade devem adotar práticas rotineiras de combate à criminalidade, não por menos o desenvolvimento da segurança privada nesse mesmo período e a gestão do risco, com a assunção de uma criminologia atuarial.

E essas mudanças, de acordo com Campos (2010), na leitura que empreende da obra de David Garland, refletiram na priorização das técnicas e arranjos de segurança pública mais centrados na figura da vítima.

Aliás, esse movimento de aproximação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da figura da vítima, não qualquer vítima, mas daquela branca e de classe média, foi objeto de análise por parte de Garland, bem como por Jonathan Simon (2009) em Governando através do crime: como a guerra ao crime transformou a Democracia Americana e criou a cultura do medo.

A pergunta entabulada por Campos (2010), nesse ponto, nos parece de suma relevância: “Um Estado mais punitivo e a negação desta punição?” É que o diagnóstico empreendido por Garland (2009) coloca-nos que as políticas criminais de controle do crime não apenas se caracterizam pela punitividade, mas, também, pela ambivalência.

É que de acordo com Garland, são esses padrões culturais, práticas culturais e sensibilidades culturais que formam a superfície social sobre a qual são erguidas as estratégias de controle do crime que dominam os dias atuais.

O autor deixa claro, no entanto, que a diferença entre países influencia a forma como estas estratégias têm se desenvolvido nos diferentes locais, mas, também, aponta que no caso dos EUA e da Inglaterra, o que constatou foram os mesmos parâmetros estratégicos que caracterizam o campo do controle do crime, independentemente de administrações mais conversadoras ou republicanas.

E Garland enuncia:

Os temas primários das novas estratégias – expressividade, punitivismo, vitimização, proteção pública, exclusão, maior controle, prevenção de perdas, parcerias público-privadas, responsabilização – estão fincados numa nova experiência coletiva, da qual retiram seu significado e sua força, e nas novas rotinas sociais que fornecem suas técnicas e apoios práticos. Também estão enraizadas na tematização reacionária da “pós-modernidade”, produzida não apenas pelo crime, mas por toda a corrente reacionária cultural e política que caracteriza o presente em termos de colapso moral, de incivilidade, e do declínio da família, exortando a reversão da revolução dos anos 1960 e do movimento de liberação cultural e política que ela deslanchou. A sociedade porosa, móvel, aberta, de estranhos, da pós-modernidade deu causa a práticas de controle do crime que buscam tornar a sociedade menos aberta e menos móvel: fixar identidades, imobilizar os indivíduos, colocar em quarentena setores da população, erguer fronteiras, fechar acessos. Se estas estratégias não são absolutamente determinadas pelo campo social que descrevi, elas são fortemente condicionadas por tal campo e provavelmente inconcebíveis sem ele.

Então, sairemos dessa nova jaula de ferro? Expressão utilizada por Garland ao final da sua obra, referindo-se a Max Weber, quando descreveu como a racionalidade capitalista superava a vocação espiritual que originalmente teria lhe dado significado.

Entendo que refletir sobre isso e como o que Garland explora tem aplicação a nossa realidade, sempre atentando para as nossas especificidades sociais, já é um grande começo, mas quero finalizar é com Dardot e Laval:

Marx já dizia com força: ‘A história não faz nada.’ Existem apenas homens que agem em condições dadas e, por sua ação, tentam abrir um futuro para eles. Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. (DARDOT; LAVAL, 2016).

E cabe a nós mulheres, afinal, somos nós quem estamos demonstrando a nossa força constantemente, contra o fascismo e o retrocesso!


REFERÊNCIAS

CAMPOS, Marcelo da Silveira. Crime e Congresso Nacional. Uma análise da Política Criminal aprovada de 1989 a 2006. 1. ed. São Paulo: IBCCRIM, 2010.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

GARLAND, David. A cultura do controle. Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

SIMON, Jonathan. Governing Through Crime: How the War on Crime Transformed American Democracy and Created a Culture of Fear. EUA: Oxford University Press, 2009.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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