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Cultura do medo e Direito Penal

Cultura do medo e Direito Penal

Como ocorrido na antiguidade e idade média, o medo continua sendo utilizado como ferramenta de controle social tanto pelo Estado, quanto pelas instituições sociais informais.

Ocorre que em tempos de pós modernidade, ou, na acepção de Zygmunt Bauman, em tempos de “modernidade liquida” (BAUMAN, 2008, p. 27), temos constatado a utilização do medo como forma de justificação para maiores e mais severas medidas punitivas, bem como para a (re) legitimação da pena e do sistema penal como medida eficaz de combate ao crime e solução dos conflitos.

Nesse sentido, constata-se na atualidade que através do processo de globalização e desenvolvimento do capitalismo, sobretudo, nas sociedades ocidentais modernas, um aumento generalizado de insegurança e medo nos indivíduos, o que acaba gerando uma verdadeira “sociedade de risco” (BECK, 1998, apud WERMUTH, 2011, p.26), onde todos se vêem – a todo momento – como possíveis vítimas da violência e insegurança que assola os tempos atuais.

Nesse sentido, Wermuth (2011, p. 29), valendo-se das contribuições doutrinárias de Bauman, aduz que

O catálogo dos medos, ressalta Bauman (2008, p.12), está longe de esgotar: ‘novos perigos são descobertos e anunciados quase diariamente, e não há como saber quantos mais, e de que tipo, conseguiram escapar à nossa atenção (e a dos peritos!) – preparando-se para atacar sem aviso’. É por isso que, no ambiente líquido-moderno, a vida se transformou em uma constante luta contra o medo, companhia indissociável dos seres humanos, que passam a conviver com aquilo a que o referido autor denomina de ‘sindrome do Titanic’, ou seja, um temor desmedido de um colapso ou catástrofe capaz de pegar todos despreparados e indefesos e os atingir de forma indiscriminada.

É evidente que não há como ignorar o fato de que temos vivenciado mundialmente, e especificamente no Brasil, uma verdadeira epidemia de violência e insegurança. Por outro turno também mostra-se evidente que as políticas de segurança pública (em sua grande maioria, pautadas unicamente na repressão policial) têm falhado na missão de garantia mínima de tranqüilidade e paz social.

Ante este cenário de insegurança, o clamor popular, impulsionado pela mídia e seu discurso punitivo populista, tende demandar soluções imediatas. Exige-se dos governantes, quase que milagrosamente, a imediata solução para a violência.

Assim, em uma sociedade imersa no ideário neoliberal, influenciada, portanto pelo imediatismo do mercado e essencialmente consumista, as respostas para os conflitos sociais devem seguir a mesma lógica. Nesse sentido, Bauman registra que

Os perigos que mais tememos são os imediatos: compreensivelmente, também desejamos que os remédios o sejam – ‘doses rápidas’, oferecendo alívio imediato, como analgésicos prontos para o consumo. Embora as raízes do perigo possam ser dispersas e confusas, queremos que nossas defesas sejam simples e prontas a serem empregadas aqui e agora. Ficamos indignados diante qualquer solução que não consiga prometer efeitos rápidos, fáceis de atingir, exigindo em vez disso um tempo longo, talvez indefinidamente longo, para mostrar resultados. (BAUMAN, 2008, p. 149)

Em razão do cenário de medo e insegurança, disseminado, sobretudo pelas corporações midiáticas, a simples cogitação de se tornar uma vítima da violência fomenta nos indivíduos a mudança de horários, rotinas e práticas como modo de afastar, ou ao menos diminuir, as probabilidades de ver-se inserido em uma situação de perigo. Busca-se, desse modo, antever o mal e antecipar-se a ele como modo de autodefesa.

Desse modo, a coletividade contempla a expansão do direito penal como resposta ao medo. E nesse processo de expansão e afirmação do direito e sistema penal a atividade legislativa ganha impulso por meio de medidas populistas que prometem o combate à violência e insegurança, que por sua vez é superdimensionada pela mídia por meio do discurso populista punitivo.

Nesse sentido, a partir do momento em que se encontra instaurado o clima geral de temor, a utilização do direito penal pelos agentes políticos populistas se torna interessante ferramenta na disputa eleitoral, tanto para aqueles que querem alçar um cargo eletivo, quanto para aqueles que buscam sua manutenção no poder.

E assim os anseios populares por mais rigor penal e menos garantias processuais, impulsionados pelo medo, rapidamente encontram abrigo nas propostas de alteração da legislação penal, elaboradas por políticos populistas.

Entretanto, a percepção empírica tem constatado que as propostas voltadas para o atendimento aos clamores populares e midiáticos apenas apresentam a falsa solução para o problema da violência, uma vez que criam a impressão na população de que algo está sendo feito pelas autoridades instituídas no poder, sem, no entanto, se observar que em verdade tais medidas não serão capazes de sanar os problemas que se propõem a combater.

Nesse sentido, em face da pressão provocada pela mídia e refletida na exigência por parte da população por mais rigor punitivo,

os candidatos , independentemente  da ideologia partidária, não só se sentem compelidos a incluir os reclames punitivistas […] em sua pauta eleitoral a fim de não cair em desprestígio midiático ou impopularidade, como também a ativar a clamada produção legislativa em matéria criminal no escopo de obter respaldo eleitoral, com a tranquilização simbólica da coletividade (GOMES e ALMEIDA 2013, p. 240-241).

O reflexo imediato da utilização do direito penal como ferramenta política é a superinflação legislativa de leis penais, que a doutrina comumente denomina de “instrumentalização do Direito Penal” (WERMUTH, 2011, p. 33), haja vista serem elaboradas às pressas e sem as necessárias reflexões sobre sua aplicabilidade fática e/ou necessidade.

Para se ter ideia da crescente instrumentalização do direito penal, “no Brasil, 96 leis penais foram aprovadas dos últimos 33 anos” (GOMES e ALMEIDA, 2013, p. 159), sendo que

De 1940 a 2011 o legislador brasileiro aprovou 136 leis penais, que alteraram o sistema penal, sendo que 104 leis foram mais gravosas, 19 foram mais benéficas e 13 apresentaram conteúdo misto ou indiferente. Em geral são leis emergenciais, ou seja, aprovadas após a eclosão de uma grave crise de medo e de insegurança, explorada pela mídia. Logo depois de um grande caso midiático, nova lei penal (para acalmar a ira da população). (GOMES e ALMEIDA, 2013, p. 159 – 160).

Outro aspecto que merece ser destacado neste ponto, é que o atual cenário de risco e medo identificado pela instrumentalização do direito penal também tem sido marcado pelo surgimento de uma “ideologia justificadora” (GOMES e ALMEIDA, 2013, p. 251), que consiste na utilização, principalmente por parte dos agentes populistas e meios de comunicação, de diversos mecanismos que justifiquem a adoção de medidas penais coercitivas e mais rígidas como forma de combater a violência e afastar o perigo.

Ganha forma, então, “uma mentalidade obcecada pela segurança, ancorada na ilusão de que o mero intumescimento legislativo-penal e a conseguinte fulminação de uma série de garantias penais e processuais penais serão suficientes […]” (GOMES e ALMEIDA, 2013, p. 267) para garantia da segurança e paz social.

O medo, naturalmente gerado pela violência, somado ao espetáculo midiático, cria um ambiente ideal para a proliferação dos discursos populistas punitivos, impulsionando a população a acreditar que as garantias processuais penais e os direitos e garantias fundamentais são entraves e impedimentos para a aplicação da lei penal e geram a impunidade aos infratores, devendo por tal motivo serem relativizadas ou até mesmo suprimidas.

Percebe-se, portanto, que o medo e direito penal guardam estrita relação, sendo aquele fundamental e necessário para a expansão deste, e como visto, é justamente essa inter-relação que possibilita a instrumentalização do direito penal.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

GOMES, Luiz Flavio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo Penal Midiático: Caso Mensalão, Mídia Disruptiva e Direito Penal Crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Medo e Direito Penal: Reflexos da Expansão Punitiva na Realidade Brasileira. São Paulo: Livraria do Advogado, 2011.

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