Da confissão de ontem à delação de hoje: (in)justiças possíveis
Por Chiavelli Facenda Falavigno
Da mesma forma que já tem ocorrido, há anos, com as interceptações telefônicas, a delação premiada é a nova prova “da moda” no processo penal brasileiro.[1] Em muitos casos, ela parece simplesmente retirar, dos investigadores e acusadores, o ônus de produzir quaisquer outras provas que embasem suas afirmações:
Ou seja, em razão de sua inaptidão, o Estado busca a cooperação daqueles que estão sob a coação de sua incidência punitiva iminente, eximindo-se, desse modo, da sua obrigação de produzir provas lícitas suficientes para romper com a presunção de inocência.[2]
O desvirtuamento e a expansão do instituto já vêm trazendo preocupações aos estudiosos e práticos do direito penal e processual penal.
A confissão, tema de minha última coluna, já foi considerada a rainha das provas em tempos nada saudosos. O que temos agora é uma verdadeira confissão terceirizada. Sim, pois muitos indivíduos se tornam réus, e com uma imensa presunção de culpa,[3] após ter seus delitos “confessados” pelos demais acusados.
Há muitos aspectos que valem a pena ser salientados no que tange à disciplina da delação premiada, sendo impossível abordá-los com a profundidade necessária em apenas um texto. Assim sendo, dois desses aspectos serão aqui brevemente destacados.
Primeiramente, a Lei 12.850/13, que passou a regular o instituto, estabeleceu diversos benefícios ao delator, como a redução da pena, uma facilidade maior na progressão do regime, uma maior possibilidade de obtenção da pena restritiva de direitos, a viabilidade de não ser denunciado pelo Ministério Público, e mesmo o famigerado perdão judicial. Contudo, a conta a pagar também é alta, já que a delação deve indicar culpados, prevenir ações criminosas, auxiliar na recuperação do produto do crime, etc. O colaborador, ainda, passa a receber proteção do Estado, pois, sabe-se, corre o risco de sofrer retaliações por parte dos delatados.
Sobre esses pontos, além da óbvia possibilidade de que, visando a auferir tais excedidos benefícios, o colaborador forje qualquer indício que pareça se adequar à linha acusatória de modo a, talvez incriminando um inocente, obter para si uma grande vantagem, pode-se mesmo questionar a ética do procedimento em si, ainda que ocorra de forma legítima:
O mecanismo da delação implementa-se por meio do incentivo a atitudes antiéticas daqueles perseguidos penalmente, o que rompe completamente com a promessa da atuação eticamente legítima das manifestações do poder estatal. Ou seja, há uma cristalina violação do mínimo ético fundamental à ação pública do Estado.[4]
Outra importante questão que merece destaque é a negociação da liberdade provisória em razão do acordo de delação. Ora, qual a voluntariedade[5] de contribuição obtida por alguém submetido às condições degradantes dos presídios brasileiros? Sequer denunciação caluniosa poderia ser imputada ao delator, que no ato abre mão de seu direito ao silêncio e passa a falar sob o compromisso de dizer a verdade,[6] já que atuaria em verdadeira inexigibilidade de conduta diversa! Nesse sentido:
Como primeiro ponto, cumpre destacar as hipóteses, cada vez mais frequentes, de acordos de delação que utilizam a liberdade do indivíduo como genuína moeda de troca. De modo simplificado: se o delator decidir contribuir, a prisão cautelar (aquelas impostas sem pena definitiva) é revogada; se não auxiliar nas investigações, permanecerá encarcerado. Trata-se de prática manifestamente ilegal e as razões são inúmeras. Talvez a mais óbvia resida no fato de que a prisão cautelar, a não ser que queiramos retornar a épocas nada saudosas, jamais pode servir de instrumento para obtenção de confissões ou informações. Como medida excepcionalíssima, ou bem estão presentes os requisitos para manter a custódia antes de encerrado o processo, ou então que se coloque o indivíduo em liberdade. Uma pessoa não está mais ou menos apta a responder um processo em liberdade apenas porque decidiu delatar.[7]
Assim, em que pese seja uma realidade no processo penal brasileiro, o uso indiscriminado da delação premiada pode, sim, apresentar uma série de problemas no que tange a garantias, respeito a procedimentos, mínimo ético exigível de condutas Estatais e mesmo justiça de sentenças condenatórias. Nos resta aguardar, atentos e vigilantes, como se posicionarão os tribunais superiores nos próximos anos a respeito dessas questões.
[1] Um dos temas, aliás, de Seminário que ocorre essa semana no Superior Tribunal de Justiça (ver aqui).
[2] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. p 125.
[3] Mesmo tendo a Lei 12.850, em seu artigo 4º, parágrafo 16, estabelecido: § 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.
[4] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. p. 126.
[5] Lei 12.850: Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: […]
[6] Lei 12.850: Art. 4º, § 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.
[7] Disponível aqui. Acesso em 03.09.2015.