Da (im)possibilidade de relativização do crime de estupro de vulnerável
Por Ingrid Bays
Introduzido pela Lei nº 12.015 de 2009, o artigo 217-A do Código Penal tipifica o crime de estupro de vulnerável, consistente em “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. A norma em questão tutela a dignidade sexual dos vulneráveis, isto é, das “pessoas incapazes de externar seu consentimento racional e seguro de forma plena”.[1]
Na data de 26 de agosto do corrente ano o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 1.480.881 – PI (2014/0207538-0), cujo processamento se deu pelo rito do artigo 543-C do Código de Processo Civil, ou seja, sob o rito do recurso especial repetitivo, fazendo com que a decisão proferida sirva de orientação para as demais instâncias da Justiça sobre como proceder em casos idênticos. A partir disso, evita-se que os recursos que sustentem em sua argumentação posições contrárias subam até o Superior Tribunal de Justiça.
Após o referido julgamento, assim restou proposta a tese assentada, proferida pela Terceira Seção:
“Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.”
Em suma, o caso analisado dizia respeito ao namoro entre uma menina menor de 14 anos e um jovem que já contava com idade superior a 20 anos. A sentença proferida no primeiro grau o condenou a uma pena de 12 anos de reclusão pela prática de estupro de vulnerável em continuidade delitiva. Todavia, ao julgar o recurso de apelação interposto pelo réu o Tribunal de Justiça do Piauí o absolveu, relativizando a presunção de violência ao caso em concreto, que demonstrava inequivocamente o discernimento e o consentimento da menor para manter a relação sexual com o acusado, ressaltando-se, inclusive, a existência de relação amorosa entre ambos.
De outra banda, o Ministro Relator Rogério Schietti Cruz firmou o entendimento acima colacionado, acompanhado, por unanimidade, pelos demais Ministros da Terceira Seção. Seu voto, cujo mérito argumentativo é de ser reconhecido, baseou-se, principalmente, em uma imprescindível análise histórica, ressaltando-se o necessário progresso rumo a uma proteção integral da criança e do adolescente, conforme estabelecido pelo ECA. Não obstante, afirmou que a questão da presunção de violência não deve ser enfrentada por um viés moralista, uma vez que “o tema é essencialmente jurídico e dentro do Direito há de ser analisado”. Ademais, atentou para o fato do dispositivo legal previsto no artigo 217-A ser bem específico, ou seja, “basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos, sendo irrelevante à caracterização do crime e o dissenso da vítima”, lembrando que devem ser evitados subjetivismos na atuação do julgador, motivo pelo qual afastou a aplicação do princípio da adequação social aos casos de estupro de vulnerável.[2]
O acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Piauí foi severamente criticado pelo eminente ministro, por ter, em sua análise, julgado a vítima enquanto deveria “julgar o réu, ou, antes, o fato delituoso a ele atribuído”. É importante demonstrar que a análise do 2º grau partiu de uma interpretação mais ampla, consignando-se a necessidade de que é preciso examinar a dinâmica dos fatos, personalidade e comportamento dos agentes envolvidos no contexto, com base nos princípios constitucionais da liberdade e da dignidade da pessoa humana e nos valores culturais internalizados.
É de se destacar que a jurisprudência envolvendo o tema sempre oscilou, tendo inclusive a própria 3ª Seção do STJ afirmado, em 2012, o caráter relativo da presunção de violência no crime de estupro de vulnerável, levando em consideração a ausência de “ingenuidade” ou “desinformação das vítimas”, não sendo o caso, portanto, de violação da liberdade sexual do menor.
Ao realizar uma singela pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é possível observar que a relativização vem sendo adotada quando resta evidente o consentimento da suposta vítima e notável a ausência de indícios de que havia sido realizado qualquer meio de coação. Não bastasse isso, é possível aferir em muitos casos a existência de relacionamento afetivo, muitas vezes consistente em união estável, em que o acusado e a vítima vivem maritalmente. Portanto, o entendimento consiste no fato de que a vulnerabilidade da vítima não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério etário – o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva -, devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de suas particularidades.[3]
O ponto central da questão é a situação da vulnerabilidade, pois seria hipocrisia afirmar que não exista, atualmente, a possibilidade de um menor de 13 anos, por exemplo, compreender os significados e as consequências de seu comportamento e possuir discernimento para consentir com o ato sexual e ter vontade de realizá-lo. Nesse sentido, é temerário deixar de analisar o caso em concreto e adotar um entendimento com fulcro apenas na “letra fria da lei”, apesar de esta, inegavelmente, apresentar considerações objetivas e taxativas. De qualquer sorte, seria a postura mais adequada o julgador se manter inerte diante de situações como as acima expostas, deixando de realizar uma apreciação mais minuciosa, levando em conta as circunstâncias fáticas e o comportamento e vontade dos indivíduos? Não estaria mais uma vez o Direito Penal interferindo nos valores constitucionais da liberdade e da dignidade da pessoa humana, ao punir indiscriminadamente condutas advindas de união de vontades e desígnios?
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 33. Sobre o tema, ainda, imprescindível a leitura: FAYET, Fabio Agne. O delito de estupro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
[2] Quanto às decisões judiciais nos crimes sexuais, indico a seguinte leitura: DIVAN, Gabriel Antinolfi. Decisão judicial nos crimes sexuais: o julgador e o réu interior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
[3] Conforme se depreende dos seguintes julgados: TJRS. Apelação Criminal nº 70062147657. Rel. Des. Naele Ochoa Piazzeta. Oitava Câmara Criminal. Julgado em 15/07/2015; TJRS. Apelação Criminal n° 70058773722. Rel. Des. Lizete Andreis Sebben. Quinta Câmara Criminal. Julgado em 24/06/2015; TJRS. Apelação Criminal nº 70058170457. Rel. Des. Bernardete Coutinho Friedrich. Sexta Câmara Criminal. Julgado em 30/04/2015. TJRS. Apelação Criminal nº 70055526644. Rel. Des. Carlos Alberto Etcheverry. Sétima Câmara Criminal. Julgado em 17/12/2014.