Por Letícia de Souza Furtado
Imagine uma pequena vila dinamarquesa cujos habitantes possuam fortes traços da solidariedade mecânica conceituada por Durkheim (2004, p. 38). Os homens se reúnem para beber, bradam canções uníssonos, colidindo seus canecos, soqueando a mesa e espalhando cerveja por tudo. Lá a caça é tradição, todos têm armas. Quando os rapazes atingem certa idade, são presenteados com um rifle, sob um discurso: “Você se tornará um homem, ganhará a floresta”. O filme A Caça se passa em um cenário assim. O protagonista Lucas é nativo e trabalha em uma escolinha, onde estuda Klara, filha mais nova de seu melhor amigo.
Com cinco anos de idade, a menina está sempre esperta aos diálogos de quem a cerca. Certo dia, seu irmão, num frenesi estúpido, mostra-lhe uma revista pornográfica – “Pinto levantado! Pinto, pinto! Oi, Klara! Olha só, duro como um bastão!” –; esse episódio se torna essencial à interpretação do que vem a seguir, pois propaga seus efeitos pelo restante do longametragem. Aliás, ele pode ser observado em conjunto com a cena na qual Klara aguarda sentada na frente de casa, enquanto seus pais brigam para decidir quem a levará na escola. Lucas passa e pergunta para a criança se está triste com a discussão; ela responde: “não, ele merece um pé na bunda”. A frase de Klara, em um primeiro momento, pode parecer “engraçadinha”; contudo, em verdade, é sintoma de sua forma de interagir com o mundo. Trata-se, possivelmente, da mera reprodução de algo que ouviu, pois Klara, é como uma criança qualquer: age por imitação. A atenção que recebe de Lucas faz com que a pequena passe a alimentar uma paixonite pelo professor. Ele logo repara e a chama para uma conversa, ao final da qual a menina deixa a sala sentindo-se rejeitada. Depois, abatida e sentada na penumbra, ela dialoga com a diretora da escolinha, diz que odeia o professor, e que o “pinto” dele é “levantado, como um bastão”.
Polvorosa na comunidade, claro. Lucas vira “a caça”, passa a ser coagido pelo clã. O professor é um sujeito sereno. Seu comportamento quase passivo o deixa vulnerável, algo muito conveniente para os perseguidores. Não é à toa que somente consegue ser ouvido quando “explode” e demonstra agressividade. Contestando de outra forma – pacato – apanha, porque, onde não há defesa, a acusação impera.
A vila inteira está convencida de que ele abusou dos aluninhos. Segundo GIRARD, no que tange às perseguições em massa: “A representação persecutória conserva certas características de uma representação coletiva no sentido de Durkheim”. O antropólogo francês ainda menciona (2004, p. 261):
O melhor meio de fazer amigos, em um universo não amigável, é desposar as inimizades, é adotar os inimigos dos outros. O que dizemos a esses outros, neste caso, nunca varia muito: ‘Somos todos do mesmo clã, formamos apenas um só e mesmo grupo, pois temos o mesmo bode expiatório.’
Em outras palavras, quem se une para perseguir diz ao confrade: “pode contar comigo, nos importamos com as mesmas coisas”. Em A Caça, a narrativa de Klara desestabiliza o grupo – ao qual Lucas, até então, pertence – porque a noção preestabelecida, sedimentada e incontestável, de que as crianças não podem ser molestadas é posta em cheque. Trata-se de um dogma que contribui para a boa fluência das interações sociais, uma segurança de aplicação imediata, que afasta impasses.
No momento em que alguém, supostamente, macula essa regra, a incerteza quanto à incolumidade dos infantes emerge tal qual uma ameaça de caos. “Destacando” Lucas do grupo, os membros da comunidade frisam os limites do sistema, para restabelecê-lo. Quando Girard comenta que a representação persecutória se assemelha à representação coletiva de Durkheim, aclara que aquela somente é possível porque a multidão é a representação de todos em um, uma entidade formada por diversos indivíduos de ímpeto concertado, dominados pela convicção de culpa do acusado. Isso ocorre porque todos interpretam os fatos de forma semelhante, sob a lente da mesma essência cultural.
Histórias como a contada pelo filme A Caça não são exclusividade da ficção. O Brasil teve seu episódio real, que ficou conhecido como “Escola Base”. Esse caso foi televisionado e seu desenrolar poderia, tranquilamente, originar uma novela “emocionante”. As semelhanças com o filme são inúmeras: criancinhas de creche; acusação de abuso sexual; relatos parecidos que se multiplicaram; comoção popular e contraditório sufocado. Em São Paulo, no ano de 1994, durante dois meses – março e abril – seis pessoas que trabalhavam na escola de educação infantil Base foram massacradas, moral e fisicamente, pela imprensa nacional e pela polícia, sem que houvesse contra eles mais do que alegações feitas por duas mães de aluninhos. Segundo elas, os filhos teriam revelado um esquema de abuso sexual coletivo, supostamente praticado pelos pais de outro aluno em conjunto com os donos do estabelecimento, uma professora e o motorista do transporte escolar. Com um delegado vidrado pelo brilho dos holofotes, e jornalistas secos por notícias bombásticas, o caso logo virou um jogo de RPG.
A cada dia, novas vítimas eram “descobertas”, e detalhes escandalosos eram inseridos na história. A Escola Base ficou conhecida como “escolinha do sexo”, de onde as crianças seriam levadas até uma casa na qual participariam de orgias, usariam drogas, seriam fotografadas e abusadas. No desfecho da investigação, após o afastamento do delegado que conduzia o “inquérito-espetáculo”, restou comprovada a inocência de todos. E, nesse ponto, é necessário explicitar que a teoria mimética de René Girard também é aplicável à história da Escola Base, pois a imprensa é capaz de transformar o país em uma grande vila, despertando aquele mesmo comportamento de clã nas pessoas, as quais, então em maior escala, polarizam-se em face dos personagens das polêmicas que recheiam os jornais e noticiários.
A similitude entre os episódios se dá, dentre outros motivos, por algo bem sabido: os adultos lidam mal com situações nas quais os infantes falam em sexo – haja vista o temor que circunda a clássica pergunta “de onde vêm os bebês?” À histeria que tal situação causa em “gente grande”, soma-se o temor de que pureza infantil seja maculada, e a falsa ideia de que crianças só falam a verdade. Para começar, já é amplamente sabido que certas formas de colheita de testemunho são mais eficazes do que outras, porque extraem narrativas de maior fidedignidade. Questionando os infantes de modo indutivo, elaborando perguntas que os levem a responder “sim” ou “não”, os adultos desencadeiam um processo em que a realidade pode ser perigosamente distorcida pela criação infantil (WELTER e FEIX).
Divulgado o escândalo, a cena tende a se reproduzir no lar de cada uma das crianças, pois nenhum dos pais terá controle emocional para conduzir uma narrativa livre, tampouco poderão disfarçar a tensão. No Caso da Escola Base, o autor do livro que registrou o fato relata que uma das mães deixou o filho, suposta vítima, frente a frente com o dono da creche e, na presença da polícia e de jornalistas, perguntou: “É esse aí?????” (RIBEIRO, 1995). Além disso, a mulher deu entrevistas com a criança no colo.
As crianças não falam somente a verdade; esta ideia só pode ser mantida pela falta de observação. Elas eventualmente mentem, sobretudo porque são amorais – desconhecem, ainda, a noção de moral –, estão recém ingressando no empirismo vitalício, seus juízos de valores são deficitários demais, não sabem a extensão consequencial de seus atos. Infância é tempo de observar, imitar e testar.
As crianças faltam com a verdade quando a imaginação fértil voa livre (ANDRADOS, 1970); quando a maldade genuína se manifesta (BARBIRATO); ou quando lançam mão de um mecanismo de defesa. Por vezes, estão apenas inventando/brincando mas, por não perceber a seriedade implícita daquilo que dizem, deixam de avisar ao ouvinte. Falhas de percepção da realidade também produzem relatos distorcidos, os quais, ainda que não se tratem de mentiras, têm o mesmo efeito nocivo. É certo, ainda, que as crianças, assim como os adultos, são vulneráveis ao desenvolvimento de falsas memórias. Neste caso, falarão sem titubear, convictas, pois o detentor da falsa memória crê nela como se fosse lembrança real.
É especialmente relevante que estejamos conscientes disso tudo, pois uma declaração “suspeita” vinda de um pequeno logo vira um gérmen que os adultos são capazes de transformar numa seringueira de quinhentos anos. O filme A Caça e o livro Caso Escola Base, convidam-nos a refletir sobre contraditório, falsas memórias, depoimento sem dano e muitos outros temas relevantes ao estudo interdisciplinar das Ciências Criminais. Além de entreter com sucesso o telespectador e o leitor, têm o potencial de despertar a empatia que o dia a dia adormece.
REFERÊNCIAS
ADRADOS, Isabel. A mentira na criança. Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, v. 22, n. 1, p. 41-47, 1970.
BARBIRATO, Fábio. A Maldade Infantil. Revista Galileu, entrevista concedida a Guilherme Rosa. Disponível aqui.
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 261.
STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas Memórias. Porto Alegre: Artmed, 2010.
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base: Os abusos da Imprensa. São Paulo: Editora Ática, 1995.