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De 1º Instância ao STF em 24 horas: uma análise do caso Paulo Bernardo


Por Ivan Morais Ribeiro


Irei analisar, de forma detalhada e crítica, o caso da prisão preventiva do ex-Ministro Paulo Bernardo. O que motivou esse pequeno artigo foi a concessão do HC de ofício concedido em menos de 48 horas no bojo da Reclamação 24506 contra ato de um Juiz de 1º Instância. Ou seja, saiu de uma esfera de 1º instância ao STF e em menos de 48 horas o HC foi concedido. A presente análise será dividida em 04 capítulos: Da Prisão Preventiva, Da atuação da Defesa, Da atuação do STF e Das Críticas.

Capítulo 1 - Da prisão preventiva

Quando que o Sr. Paulo Bernardo foi preso e por qual motivo?

O Ex-Ministro do Planejamento e das Comunicações Paulo Bernardo foi preso no dia 23 de junho de 2016 na 18ª fase da Operação Lava Jato.

O objetivo, de acordo com nota da PF, das investigações é apurar o pagamento de propina, proveniente de contratos de prestação de serviços de informática, no valor de R$ 100 milhões, entre os anos de 2010 e 2015, a pessoas ligadas a funcionários públicos e agentes públicos no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

A prisão processual decretada pelo Juízo da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo foi da espécie preventiva.

E com base em que foi decretada a prisão preventiva? Qual foi o fundamento?

Vale a pena ler os fundamentos do Juízo singular que justificam a presença do periculum libertatis. Negritei as partes mais importantes:

“Cumpre, agora, analisar a presença dos requisitos que ensejam a prisão cautelar. Polícia e Ministério Público Federal sustentam basicamente risco à instrução criminal e à aplicação da lei penal. Conforme acima fundamentado, os indícios da materialidade delitiva apontam prejuízo superior a sete milhões de reais, dinheiro que seria, em tese, fruto de corrupção passiva (propina) mediante a tentativa de dissimulação pelas notas fiscais referentes a supostos honorários advocatícios devidos pela CONSIST, o que, num primeiro momento, foi negado por PABLO KIPERSMIT, do grupo CONSIST (lavagem de valores). A gravidade, em tese, do crime é evidente, porém a gravidade, por si só, não preenche os requisitos cautelares para a prisão preventiva. Assim, deve-se analisar o caso concreto. Na presente situação, tem-se que PAULO BERNARDO é um agente político obviamente influente, tanto que ocupou um Ministério de grande relevância como o do Planejamento. Existe o risco à instrução criminal, não só por conta da condição política de PAULO BERNARDO. O risco concreto existe devido aos indícios da relação espúria com GUILHERME GONÇALVES e o referido FUNDO CONSIST. Nota-se, assim, desde o início o intuito de dissimulação que certamente não desaparece pelo fato de PAULO BERNARDO ser um ex-ministro, pelo contrário, é agravado. Há, portanto, um risco concreto de novas manipulações nas provas, tanto documentais como testemunhais, tanto em relação a PAULO BERNARDO quanto em relação a GUILHERME GONÇALVES. Existe, ainda, o risco à aplicação da lei penal, eis que teriam sido desviados sete milhões de reais (os pagamentos da CONSIST para GUILHERME GONÇALVES, que seria intermediário de PAULO BERNARDO) e tal quantia ainda não foi devidamente localizada. O risco de realização de novos esquemas de lavagem desses valores não localizados é expressivo. A não localização de expressiva quantia em dinheiro desviada dos cofres públicos representa, inclusive, risco à ordem pública, e aqui não se trata apenas do clamor público da sociedade evidentemente cansada da corrupção. Trata-se, sim, do risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira, a qual certamente é agravada pelos desvios decorrentes de cumulados casos de corrupção. Vale lembrar, outrossim, que não existe apenas risco à ordem pública, quando o acusado mostra-se perigoso para a sociedade num sentido violento. Tal interpretação fatalmente relegaria a prisão preventiva apenas para investigados ou acusados pobres. A corrupção de quantias expressivas também representa um perigo invisível para a sociedade, que acaba se tornando vítima sem o saber, pois não vê que o dinheiro público desviado deveria ser aplicado em seu próprio favor, por meio da melhoria da infraestrutura e serviços públicos em geral do País (ou no combate a criminalidade, agravada pela pobreza que é gerada pela corrupção-observação nossa). Por tais razões, entendo presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva de PAULO BERNARDO SILVA e de GUILHERME DE SALLES GONÇALVES, para garantia da ordem pública, da instrução criminal, e da aplicação da lei penal, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. Os riscos apontados, especialmente os relacionados ao desvio de milhões de reais dos cofres públicos que podem não ser recuperados, e os relacionados à instrução criminal, não são passíveis de serem obstados por medidas cautelares mais brandas, nos termos do art. 319 do Código de Processo Penal. Lembro que a decretação de prisão preventiva não significa antecipação de juízo de culpabilidade. Ela é decorrente de uma combinação de indícios suficientes de materialidade e autoria delitiva e da presença dos requisitos cautelares, acima expostos. O juízo de culpabilidade, ao menos na primeira instância, só é formado após o encerramento da instrução criminal e os requisitos da prisão preventiva são, em tese, analisados a qualquer tempo do processo, iniciando-se pela audiência de custódia, prevista na Resolução do Conselho Nacional de Justiça, que será devidamente designada.”

Ou seja, para o Juízo singular, a fundamentação foi com base na para garantia da ordem pública, da instrução criminal, e da aplicação da lei penal.

Capítulo 2 - Da Atuação da Defesa

A escolha processual da Defesa

A Defesa decidiu ir direto para o STF. Mas por qual motivo? Político? Acredito que sim, especialmente ao se analisar a prevenção. E como pular da 1ª instância direto para o Supremo Tribunal Federal? Eis a pergunta.

Bom, para responder tal indagação é preciso entender primeiro qual é o remédio processual para atacar decisão que decreta a prisão preventiva.

Alguns doutrinadores entendem que em uma interpretação extensiva do artigo 581, V, do Código de Processo Penal, o recurso adequado é o Recurso em Sentido Estrito, assim como o remédio Constitucional Habeas Corpus. Outros entendem que é decisão irrecorrível, apenas atacada por Habeas Corpus. Pelo sim, pelo não, é praxe e recomendável a utilização do Habeas Corpus.

Contudo, nem o RESE, tampouco o HC, conseguiriam levar o Caso em foco direto para o STF, devido ao fato da escalada de instâncias que deveria ocorrer. Por exemplo, se fosse impetrado Habeas Corpus contra essa Decisão do Juízo de 1º grau, a competência seria do Tribunal Regional Federal da 3º Região. Eventual recurso do julgamento do HC no TRF seguiria para o STJ e não para o STF. Perceba que a escada é longa.

Mas então……como levar esse Caso da 1ª instância direto para o STF?

Existe apenas 01 instrumento processual hábil para avançar tantas instâncias processuais assim, qual seja: A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL.

Parênteses do TRF-3

E se a defesa escolhesse entrar com o HC no TRF-3? Possivelmente teria sua pretensão negada, tendo em vista que horas antes do protocolo da Reclamação no STF, a 11ª Turma do TRF-3, por unanimidade, negou Habeas Corpus impetrado pelo investigado xxxx na mesma operação. Fecha parênteses.

Petição Inicial: a Reclamação Constitucional – o pedido de distribuição por prevenção

Pois bem, a defesa entrou pela porta da frente do Supremo e parou no gabinete do Ministro Dias Tofolli.

Foi solicitada na Exordial a distribuição por prevenção com base no artigo 70 do Regimento Interno do STF: Será distribuída ao Relator do feito principal a reclamação que tenha como causa de pedir o descumprimento de decisão cujos efeitos sejam restritos às partes.

A distribuição por prevenção teve êxito, pois essa fase da Operação Lava Jato, Inquérito 4130, na qual uma das investigadas era a Senadora Gleisi Hoffmann, tinha como Relator no STF justamente o Ministro Dias Toffoli. A defesa já sabia disso.

O que a Defesa alegou para sustentar o cabimento da reclamação?

Alegou que a investigação sempre tratou Paulo Bernardo e Gleisi Hoffman, cônjuges, como co-autores em um indivisível “concurso necessário”, caracterizando a continência subjetiva, de modo que a prerrogativa de foro da senadora deveria ser prolongada para o investigado co-autor. Dessa forma, o STF era o único competente para dizer o direito em relação a Paulo Bernardo e que quando o juízo da 6ª Vara Criminal atuou no caso, usurpou imediatamente a competência do próprio Supremo, justificando assim a Reclamação.

“A investigação trata PAULO BERNARDO e GLEISI HOFFMANN sempre, invariavelmente, como coautores dos mesmos fatos, buscando claramente caracterizar uma espécie de permanente e indivisível “concurso necessário” entre eles, de forma a evidenciar-se a hipótese de continência subjetiva (CPP, art. 77, I), o que leva à atração do feito ao Egrégio Supremo Tribunal Federal, por força da prerrogativa de foro da Senadora da República. Em razão disso, a hipótese é de usurpação da competência dessa Corte, a ser sanada pela via da Reclamação, consoante dispõem o art. 988 do CPC e o art. 156 do RISTF.” (Petição Inicial da Defesa de Paulo Bernardo.(Rcl 24506 – RECLAMAÇÃO).

Todavia, o STF tem jurisprudência majoritária no sentido de que “o desmembramento do feito em relação a investigados que não possuam prerrogativa de foro “deve ser a regra, diante da manifesta excepcionalidade do foro por prerrogativa de função, ressalvadas as hipóteses em que a separação possa causar prejuízo relevante” (Inq nº 2.903/AC-AgR, Pleno, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 1º/7/14, grifei). Ou seja, o desmembramento é a regra.

Contudo, a Defesa tentou se valer de alguns poucos julgados, dentre eles do próprio Toffoli, em que o STF decidiu pela extensão do foro de prerrogativa, ou seja, pela manutenção da unidade de julgamento do caso a investigados que não ostentavam foro por prerrogativa, com base na regra da continência.

“Nos termos do art. 77, I, Código de Processo Penal, dá-se a continência quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração. É chamada continência por cumulação subjetiva, em que existe unidade de infração e pluralidade de agentes (José Frederico Marques. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997. v. I, p. 260; Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo penal. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2, p. 217). Esse é, precisamente, o vínculo que interliga os acusados, de modo que suas condutas se imbricam indissoluvelmente e devem ser analisadas em conjunto.”

Para isso, a Defesa demonstrou através de citação de diversos trechos dos próprios relatórios policiais e de manifestações do Ministério Público que as investigações sempre trataram Gleisi e Paulo como se estivessem agindo em concurso necessário, devendo ser assim julgados de forma conjunta, sem o desmembramento.

“as manifestações da Polícia Federal e do MPF são claras quanto à linha de investigação, pois consideram sempre, sem exceção, as condutas da parlamentar associadas às do reclamante”. (Petição Inicial da Defesa de Paulo Bernardo.(Rcl 24506 – RECLAMAÇÃO).

O pedido de revogação da prisão preventiva

A Exordial em suas últimas páginas tratou sobre a ilegalidade da prisão e atacou cada ponto fundamentador da Decisão que decretou a prisão, oriunda do Juízo de 1ª grau. Desse modo, foi solicitada a revogação da prisão preventiva com fundamento no não preenchimento dos requisitos do artigo 312 do CPP, na possibilidade de decretação de medidas alternativas à prisão e na incompetência do juízo para decretar a prisão, tendo em vista o argumento da usurpação de competência do STF.

Quando foi protocolada a petição?

No andamento processual consta que a Petição Inicial foi protocolada em 27/06/2016 e que foi conclusa ao Relator em 28/06/2016.

Capítulo 3 - Da decisão do STF

Do não cabimento da Reclamação

Em 29/06/2016, cerca de 24 horas depois de concluso, o Relator deixou clara a improcedência da usurpação de competência do STF sob o fundamento que já tinha decidido anteriormente que o caso seria julgado pela 6ª Vara Criminal. Ipsis litteris:

“O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inq nº 4.130/DF-QO, de minha relatoria, DJe de 3/2/16, determinou a cisão do feito em relação a todos os investigados não detentores da prerrogativa de foro, e não somente em relação ao investigado Alexandre Romano,  como pretende fazer crer a defesa.” (…)

“Assim, a apontada continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, I), por si só, não justifica, à primeira vista, o simultaneus processos perante a Suprema Corte, que, como exposto, já determinou a cisão do feito e o prosseguimento das investigações, quanto a não detentores de prerrogativa de foro, em primeiro grau de jurisdição, ora sob a supervisão da autoridade reclamada.” (…)

“Agregue-se a esse fundamento o fato de que, em princípio, o reclamante não logrou êxito em demostrar a potencialidade de prejuízo relevante, em razão da cisão do feito, para a persecução penal ou para a sua defesa.” (Relator Dias Toffoli em Rcl 24506).

Dessa forma, o STF entendeu que a Reclamação não é procedente. Assim, Paulo Bernardo segue sendo julgado por seu juízo natural: o juiz da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo/TRF-3.

Concessão da Ordem de Habeas Corpus de ofício

Apesar de não deferir a procedência da reclamação, o Ministro Dias Toffoli concedeu, de ofício, Habeas Corpus e determinou a soltura imediata de Paulo Bernardo.

Primeiramente, não é impossível a concessão de Habeas Corpus de ofício em sede de Reclamação, vide Rcl nº 21.649/SP-AgR; Rcl nº 2.636/RJ; Rcl nº 1.047/AM-QO e Rcl nº 412/SP. Mas não é algo muito frequente.

Em segundo lugar, para o Ministro, não restaram caracterizados os requisitos da prisão preventiva estabelecidos no artigo 312 do CPP. Ipsis litteris

“Assentadas essas premissas, o fato, isoladamente considerado, de não haver sido localizado o produto do crime não constitui fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública, haja vista que se relaciona ao juízo de reprovabilidade da conduta, próprio do mérito da ação penal. O mesmo se diga quanto ao alegado “risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira”, por se tratar de mera afirmação de estilo, hiperbólica e sem base empírica idônea. A prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento para compelir o imputado a restituir valores ilicitamente auferidos ou a reparar o dano, o que deve ser objeto de outras medidas cautelares de natureza real, como o sequestro ou arresto de bens e valores que constituam produto do crime ou proveito auferido com sua prática. A prisão preventiva para garantia da ordem pública seria cabível, em tese, caso houvesse demonstração de que o reclamante estaria transferindo recursos para o exterior, conduta que implicaria em risco concreto da prática de novos crimes de lavagem de ativos. Disso, todavia, por ora, não há notícia. Também não foram apontados elementos concretos de que o reclamante, em liberdade, ora continuará a delinquir. Nem se invoque a gravidade em abstrato dos crimes imputados ao reclamante e a necessidade de se acautelar a credibilidade da Justiça.” (…)

A decisão de primeiro grau invocou ainda a existência de risco à aplicação da lei penal, pelo fato de sete milhões de reais não terem sido localizados. Ocorre que a necessidade da prisão preventiva para aplicação da lei penal visa tutelar, essencialmente, o perigo de fuga do imputado, que, com o seu comportamento, frustraria a provável execução da pena. Ora, a não localização do produto do crime não guarda correlação lógica com o perigo de fuga do imputado. Aliás, nem sequer basta a mera possibilidade de fuga, pois deve haver indícios de que o agente, concretamente, vá fazer uso dessa possibilidade, sob pena de abrir-se margem para a prisão de qualquer imputado. No movediço campo das possibilidades, tanto cabe conjecturar que o agente vá fugir quanto que irá permanecer, o que demonstra a sua fragilidade.

Por fim, a prisão preventiva amparou-se também na existência de risco à instrução criminal, em razão da “condição política” do reclamante e de “indícios da relação espúria com GUILHERME GONÇALVES e o referido FUNDO CONSIST”. Houve ainda menção fluida, no decreto de prisão, a um suposto “intuito de dissimulação que certamente não desaparece pelo fato de PAULO BERNARDO ser um ex-ministro”, invocando-se ainda o “risco concreto de novas manipulações nas provas, tanto documentais como testemunhais”. Ora, a necessidade da prisão para garantia da investigação ou da instrução criminal visa resguardar os meios do processo, evitando-se a ocultação, alteração ou destruição das fontes de prova. Seu objetivo é fazer frente a uma situação de perigo para a aquisição ou a genuinidade da prova, de modo a permitir que o processo seja concluído segundo critérios de regular funcionalidade e alcance um resultado útil. Assim, a decisão que impõe medida cautelar por esse fundamento deve indicar os elementos fáticos que demonstrem, concretamente, em que consiste o perigo para o regular desenvolvimento da investigação ou da instrução e a sua vinculação a um comportamento do imputado, uma vez que não pode se basear em mera conjectura ou suspeita. Na espécie, a decisão do juízo de primeiro grau se lastreia, de modo frágil, na mera conjectura de que o reclamante, em razão de sua condição de ex-Ministro e de sua ligação com outros investigados e com a empresa envolvida nas supostas fraudes, poderia interferir na produção da prova, mas não indica um único elemento fático concreto que pudesse amparar essa ilação. E, uma vez mais, a simples conjectura não constitui fundamento idôneo para a prisão preventiva. Em suma, descabe a utilização da prisão preventiva como antecipação de uma pena que não se sabe se virá a ser imposta. (Relator Dias Toffoli em Rcl 24506).

Capítulo 4 - Das Críticas

A decisão de conceder HC de ofício do Ministro Toffoli não está equivocada, pelo contrário, está muito bem fundamentada e dá o devido tratamento que a prisão cautelar deve receber: de ser exceção e estar sempre muito bem fundamentada em elementos CONCRETOS.  Mas então o que chama atenção no caso, na visão de um criminalista? É a velha máxima do ladrão de galinhas. No país inteiro, milhões de decisões que decretam prisões preventivas estão rotineiramente mal fundamentadas (um dia desse mesmo chegamos ao descalabro de um Juiz conceder uma prisão de ofício!).

Quem advoga sabe que aquele aviãozinho do tráfico (que o ao final talvez nem tenha pena de privativa de liberdade) ficará recluso cautelarmente com base na garantia da ordem pública. O mesmo ocorrerá para um ladrão de pequena monta. Inúmeros são os artigos de criminalistas que criticam o excessivo uso da prisão cautelar no País.

A fundamentação de Dias Tóffoli foi clara: sem elementos CONCRETOS apontados, não há como se decretar a prisão preventiva. Realço: doutrinariamente falando, foi brilhante. Todavia, será que tal Decisão irá ressoar para os ladrões de galinha do País inteiro? Tal entendimento é o mesmo aplicado aos investigados/réus que não sejam de colarinho branco?

Não venho aqui para criticar a Decisão, pelo contrário, quero que ela se alastre para todo o judiciário. Tecnicamente foi muito boa. Foi tão boa que parece ser de outro País:

  1. Velocidade na concessão da ordem para soltar o investigado (em apenas 24 horas após concluso à decisão e em torno de 36 horas depois de protocolada a Inicial);
  2. Concessão foi dada antes mesmo da manifestação da PGR.
  3. Em sede de Petição Inicial (Reclamação constitucional) que é incomum acontecer, apesar de ser possível. Privilegiou-se o status libertatis.
  4. A Decisão do Ministro teve 24 páginas, algo muito além do dia a dia das Varas e Tribunais do País inteiro.
  5. Supressão de instância e a não utilização do comum argumento de jurisprudência defensiva dos Tribunais Superiores. (É comum os Tribunais superiores não se aterem com atenção ao caso, alegando sempre uma jurisprudência defensiva baseado em um requisito formal qualquer).
  6. Rebateu ponto por ponto (algo incomum no dia a dia do judiciário) a Decisão de 1º grau demonstrando ser ela não adequada.
  7. Lustrou brilhantemente a doutrina e a exata consideração do que seja a prisão preventiva. (Algo tão distante do dia a dia em que vemos a todo instante a falta de compreensão do que seja realmente a prisão preventiva e de seus requisitos).

Uma decisão de outro mundo.

Agora, vamos ser sinceros: um advogado entra com um instrumento processual diferente do Habeas Corpus, no caso a uma reclamação que lhe dá o direito de ir direto para o Supremo, e em apenas 24 horas depois de concluso recebe a decisão (já esperada) e com 24 laudas de fundamentação de que reclamação não é cabível, mas em compensação, vê concedido o Habeas Corpus de Ofício. É ou não é, o melhor Tribunal do mundo?

A Decisão brilhante de Dias Tóffoli e a presteza de seu gabinete são elogiáveis. Mas será que tal “sorte” é direito de todos os investigados/réus???? Será que o pequeno traficante, o ladrão de galinhas, a mula do tráfico que trafica para manter seu vício, o pai que matou o agressor de sua filha, a filha que matou o padrasto agressor receberão o mesmo tratamento? Há dois mundos no Direito Penal/Processual Penal? Há dois pesos, duas medidas?

Se eu ajuizar reclamação de todos os meus clientes no Supremo, mesmo eu sabendo que o Juiz não reconhecerá a reclamação por absoluta falta de cabimento (que foi o caso em foco), mesmo assim ele poderá conceder HC de ofício? Será que isto acontecerá? E em 24h?

Apenas tenho mais certeza de algo: La jurisprudencia es como la serpiente; solo pica a los descalzos[1]


Ps: Amigos, muitos leitores tem me adicionado no Facebook e mandado mensagens, estou à disposição, na medida do possível, e aproveito também para agradecer o carinho de todos que mandaram mensagens atenciosas. Facebook: Ivan Morais. Forte abraço.


NOTAS

[1] Paráfrase da frase famosa de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”.

_Colunistas-ivanribeiro

Ivan Morais Ribeiro

Advogado. Especialista em Ciências Criminais. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/DF.

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