Decisão manifestamente contrária à prova dos autos x soberania dos veredictos
Decisão manifestamente contrária à prova dos autos x soberania dos veredictos
A partir de uma análise apressada do art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, crível seria considerar que a legitimidade para apelar de uma decisão advinda do Conselho de Sentença, sob a alegação prevista na referida norma – decisão manifestamente contrária à prova dos autos -, seria tanto da acusação quanto da defesa.
Entretanto, ao analisar sob o prisma da Constituição Federal, mais especificamente a partir do princípio da soberania das decisões populares – art. 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição da República -, que é uma garantia individual do acusado em face do aparato persecutório estatal, tem-se que a referida norma trata-se de um verdadeiro direito fundamental de primeira geração, motivo pelo qual a hipótese de cabimento do recurso de apelação prevista no art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, deve ser considerada como sendo de legitimidade exclusiva da defesa.
Antes de entrar no objeto do presente texto, faz-se necessário tecer algumas considerações.
Ao longo da nossa história legislativa, a instituição do tribunal do júri quase sempre se fez presente – à exceção dos períodos relativos aos regimes ditatoriais.
Firmada a soberania dos veredictos em 1946, esta norma vigorou de forma plena até a edição da Lei nº 263/1948, que relativizou a soberania dos veredictos, permitindo ataques ao mérito das decisões populares quando estas forem tomadas de forma “manifestamente contrária à prova dos autos”.
A instituição do Tribunal do Júri vem se apresentando como uma exceção na estrutura das funções estatais.
Contudo, vai muito além disso.
Atualmente, a participação popular no Tribunal do Júri é prevista como cláusula pétrea na Constituição Federal, através da norma que garante a soberania dos veredictos, justamente para se evitar que decisões advindas de processos cognitivos fundados no senso social de justiça sejam alteradas pela magistratura togada.
Ou seja, a instituição do Tribunal do Júri é resguardada como aquela em que a técnica cede lugar à íntima convicção, sendo a norma apenas um dos critérios para a solução da causa.
De fato, os jurados podem – e, por vezes, devem – julgar por questões extrajurídicas e de cunho humanitário. Não por outra razão, o quesito absolutório obrigatório em qualquer votação realizada pelo Conselho de Sentença é conhecido como “quesito da clemência”.
As razões para que um jurado vote para absolver um réu com base na “clemência” são diversas. Vão desde a compaixão e misericórdia até outras inimagináveis, de cunho íntimo e secreto, que só a ele, o jurado, dizem respeito. Eis o motivo pelo qual os julgadores populares decidem com base no princípio da íntima convicção – prerrogativa não conferida ao juiz togado em nosso atual sistema normativo.
Todas essas considerações acabam por se resumir à simples análise do alcance do princípio da soberania dos veredictos, localizado no rol dos direitos e garantias individuais, mais especificamente no art. 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição da República.
Ao cumprir o disposto no art. 483, § 2º, do Código de Processo Penal, e questionar se “O jurado absolve o acusado?” permite-se que os juízes leigos, independentemente das teses defensivas, baseando-se em sua íntima convicção, aliada ao particular senso de justiça, absolvam um acusado submetido às barras de um julgamento pelo Tribunal Popular.
Assim, a decisão do Conselho de Sentença, quando tomada a favor do réu, deverá sempre ser respeitada, não havendo que se cogitar em anulação da decisão por considerá-lo “manifestamente contrário à prova dos autos”.
Qualquer outra interpretação, significa dizer que o “quesito absolutório obrigatório”, a bem da verdade, é meramente simbólico, e não efetivamente obrigatório.
Imaginemos o seguinte caso: um pai é acusado de matar a pessoa que estuprou, matou e esquartejou a sua filha, assim que soube quem seria essa pessoa, no dia seguinte da ocorrência destes fatos brutais. O réu confessa ter realizado a conduta que lhe é imputada. O processo segue e vai a Júri Popular. No curso da sessão plenária, o acusado, mais uma vez, confessa os fatos, tais como descritos na denúncia.
Do ponto de vista jurídico-legal, não existe qualquer fundamento para a absolvição do acusado. Todavia, alguém acharia impossível que o acusado, no caso supramencionado, viesse a ser absolvido pelo quesito absolutório obrigatório?
Por óbvio, esta decisão se enquadraria na hipótese de recurso, pois manifestamente contrária à prova dos autos. Assim, caso a acusação apelasse desta decisão amparado em tal fundamento, a chance de sucesso do recurso – em uma leitura literal e não constitucional da questão – seria muito alta.
Ao se levar ao “pé da letra” o pensamento acima mencionado, tem-se que a existência de um quesito absolutório obrigatório, em determinadas situações, serviria apenas para submeter o acusado a um segundo júri, caso absolvido no primeiro.
Tal conclusão configura verdadeira aberração jurídica.
Sendo franco, a partir de uma interpretação literal, conclui-se que, quando a defesa não suscitar ao menos uma tese que seja fundada em uma das hipóteses previstas nos sete incisos do art. 386, do Código de Processo Penal, o quesito obrigatório não deveria ser acolhido.
Assim sendo, a única interpretação constitucionalmente aceitável para o art. 593, III, “d”, do Código Penal, à luz da existência de um quesito absolutório que deve ser obrigatoriamente votado pelos membros do Conselho de Sentença, é no sentido de que apenas a defesa possui legitimidade para interpor recurso de apelação fundamentado na referida norma.
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