O suprimento inidôneo de decisões não fundamentadas
O suprimento inidôneo de decisões não fundamentadas
Nos termos do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, toda decisão deve ser devidamente fundamentada sob pena de nulidade. Assim, o juiz, ao decretar a prisão preventiva de um acusado, deve fundamentar de forma exaustiva o porquê que o enclausuramento prematuro é a medida mais adequada a ser tomada.
Nessa oportunidade, o magistrado deverá demonstrar a presença de algum dos vetores previstos no art. 312 do Código de Processo Penal – garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal; assegurar a aplicação da lei penal.
Ou seja: ele irá discorrer sobre fatos ocorridos durante a persecutio criminis capazes de preencher aludidos requisitos, pois quando se trata de restrição de direitos, sobretudo restrição à liberdade, não se pode permitir que a decisão seja proferida sem razões concretas. O professor Aury Lopes Jr. explica que:
a fundamentação não deve estar presente apenas na “sentença”, mas também em todas as decisões interlocutórias tomadas no curso do procedimento, especialmente aquelas que impliquem restrições de direitos e garantias fundamentais, como os decretos de prisão preventiva, interceptação das comunicações telefônicas, busca e apreensão etc. (LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal (Locais do Kindle 2243-2246). Editora Saraiva. Edição do Kindle).
Ocorre que atualmente há uma grande banalização da prisão preventiva: o direito de responder o processo em liberdade se tornou a exceção, e as prisões prematuras a regra, desvirtuando, portanto, o que prevê o artigo 282, § 6º, do Código de Processo Penal:
A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar.
Diante disso, os decretos preventivos sem a devida fundamentação estão cada dia mais frequentes, não restando outra alternativa a defesa, senão a impetração de habeas corpus.
Mas, aí que o problema começa.
Via de regra, os desembargadores dos Tribunais de segundo grau, ao se depararem com decisões não fundamentadas, deveriam determinar a nulidade destas, todavia não é o que acontece na maioria das vezes. Isso porque, a fim de manter a prisão preventiva do acusado, os desembargadores suprem de forma ilegal a ausência de fundamentação da decisão.
Por exemplo: o juiz natural decreta a prisão do acusado afirmando que estão preenchidos os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, contudo sem fundamentar e demonstrar os motivos que o levou a decidir daquela forma. O desembargador verifica a ilegalidade da decisão, mas ao invés de torná-la nula, insere novos elementos capazes de preencher os requisitos necessários e tornar a decisão legalmente correta (art. 93, IX, CF).
Ora, cabe ao Tribunal “remendar” as decisões dos juízes de primeiro grau? Óbvio que a resposta só pode ser negativa. Se constatada a ausência de fundamentação da decisão proferida pelo juiz de base, o Tribunal deve declarar a sua nulidade e determinar que o juiz profira outra decisão, dessa vez, respeitando o princípio da motivação das decisões judiciais.
O acusado só consegue exercer o seu direito ao contraditório mediante decisões fundamentadas, pois como a defesa iria rebater uma decisão de prisão preventiva que não possuem argumentos e motivos? Não teria como.
O Superior Tribunal de Justiça tem rechaçado essa postura dos Tribunais de segundo grau. A jurisprudência da Corte Cidadã é no sentido de que não cabe aos Tribunais suprirem a falta de motivação das decisões proferidas pelos juízes naturais, conforme se verifica por meio do julgamento do HC n.º 436.759 de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz:
Não olvido, ainda, que o Tribunal a quo trouxe novos elementos para justificar a manutenção da prisão cautelar do réu, em especial o fato de ele já ostentar condenação anterior e de lhe haver sido imputada a prática de tráfico “de variadas substâncias estupefacientes (26,2 gramas de maconha, divididas em 14 porções, 1,8 gramas de cocaína, divididas em 03 porções e 17,8 gramas de cocaína em forma de crack, divididas em 48 pedras sendo estas duas últimas de elevada capacidade destrutiva e rápido poder viciante) na via pública” (fl. 67). No entanto, a jurisprudência desta Corte é firme em assinalar que o acréscimo de fundamentos, pelo Tribunal local, não se presta a suprir a ausente motivação do Juízo natural, sob pena de, em ação concebida para a tutela da liberdade humana, legitimar-se o vício do ato constritivo ao direito de locomoção do paciente. Ilustrativamente: HC n. 377.398/PE, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª T., DJe 21/3/2017. (…) À vista do exposto, concedo a ordem para assegurar ao acusado o direito de responder à ação penal em liberdade, ressalvada a possibilidade de nova decretação da custódia cautelar caso efetivamente demonstrada a superveniência de fatos novos que indiquem a sua necessidade, sem prejuízo de fixação de medida cautelar alternativa, nos termos do art. 319 do CPP.” (HC n.º 436.759, STJ, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 01/08/218).
Há mais no mesmo sentido:
Em primeiro lugar porque o Tribunal impetrado, ao manter a constrição corporal ora combatida, o fez amparando-se na necessidade de se prevenir a ordem pública de futura reiteração delitiva, ante a suposição de que, em liberdade, o paciente envolver-se-ia em novos delitos, acrescentando, desta forma, substrato fático à manutenção da segregação.
Tal assertiva, no entanto, não é apta a justificar o cerceamento ante tempus da liberdade do paciente, uma vez que, muito embora a necessidade de evitar-se a contumácia delitiva venha sendo considerada motivação idônea para a adoção da cautela, o cerne da questão é a impossibilidade de a Corte de origem, verificando a carência de fundamentação de decisum unitário, suprir-lhe a motivação, com a finalidade de legitimar a medida para além dos termos postos pelo Magistrado de primeira instância.” (HC n.º 441.590, STJ, rel. min. Jorge Mussi, DJe 29/05/2018).
Portanto, as decisões de Tribunais que suprem a falta de motivação das decisões proferidas pelos juízes de piso não estão legalmente amparadas, motivo pelo qual devem ser consideradas ilegais e, por consequência, nulas!