O decreto do presidente Bolsonaro sobre posse de armas de fogo
O decreto do presidente Bolsonaro sobre posse de armas de fogo (Por Francisco Sannini Neto, Eduardo Luiz Santos Cabette e Joaquim Leitão Jr.)
Introdução
Em data de 15 de janeiro de 2019, o Presidente da República Jair Bolsonaro, cumprindo promessa de campanha e seguindo sua linha de pensamento a respeito do armamento civil, expediu o Decreto 9.685/19, ampliando as possibilidades de que o cidadão, com o devido preparo e sem envolvimentos criminais, possa adquirir arma de fogo de uso permitido para manter em sua casa ou local de trabalho, desde que seja o proprietário ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.
Neste texto não se incursionará na tormentosa polêmica sobre se a facilitação do acesso a armas pode ser ou não um fator de contenção da violência. Há posição de previsões catastrofistas de aumento de criminalidade, bem como há o posicionamento governamental em defesa desse abrandamento das exigências para que o cidadão, repita-se, preparado e sem envolvimentos criminais, tenha acesso legal a armas de fogo para defesa própria, da família e patrimônio. Inclusive, há manifestação de armamentistas no sentido de que o decreto é extremamente tímido e poderia ou mesmo deveria ser muito mais amplo.[1]
Ademais, a própria justificação governamental corrente para o abrandamento de exigências para a posse de arma não é propriamente o intento de, com isso, reduzir os índices de criminalidade, mas tão somente propiciar ao cidadão o acesso à arma de fogo de uso permitido para que tenha, caso queira, instrumentos para sua autodefesa contra ataques criminosos, especialmente em sua residência e em locais de maior dificuldade de acesso.
Finalmente, ainda sobre o tema da facilitação da posse de armas, é verdade que o Decreto 9.685/19 não altera tão substancialmente as regras. Não libera armas de uso restrito ao cidadão comum. Não permite a venda sem registro de armas de fogo, o que, aliás, somente poderia ser feito por lei propriamente dita que alterasse o Estatuto do Desarmamento.
Não exime ninguém de comprovar capacidade e necessidade da posse da arma perante os órgãos responsáveis. Sequer o Decreto 9.685/19 põe fim à burocrática e desnecessária “renovação” do registro, porquanto apenas aumenta o prazo para 10 (dez) anos.
Enfim, para aqueles que esperavam uma liberação total do armamento de fogo pelo governo Bolsonaro, ficam decepções se aguardavam ansiosos pelo momento oportuno para fazerem terríveis críticas, bem como, em similar medida de decepção, para aqueles que esperavam realmente uma liberação total ou muito mais ampla do que a que ocorreu.
Pontos principais do debate
O que efetivamente chama a atenção no Decreto 9.685/19, diz respeito a dois pontos principais:
a) eventual alegação de criação inconstitucional de conduta criminosa por via do Decreto 9.685/19 e não de lei, no que se refere ao disposto no artigo 12, § 10, do Decreto 5.123/04, com sua nova redação.
b) dúvida a respeito da ocorrência ou não de “abolitio criminis” com relação às pessoas que tenham armas de uso permitido regularizáveis, mas atualmente sem registro, por força do disposto no artigo 2º. do Decreto 9.685/19.
Iniciando pelo item “a”, o que ocorre é que, de acordo com as alterações promovidas pelo artigo 1º, do Decreto 9.685/19, passa o artigo 12, inciso VIII, do Decreto 5.123/04 a exigir que a pessoa que resida com criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental, apresente declaração de que a sua residência possui cofre ou local seguro com tranca para armazenamento da arma de fogo e munições.
Em seguimento, o § 10 do mesmo dispositivo do Decreto 5.123/04 passa, mediante alteração promovida pelo atual Decreto 9.685/19, a determinar que aquele que inobservar o disposto no inciso VIII do “caput”, acima mencionado, incidirá nas penas previstas no artigo 13 da Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento).
Numa primeira visão e interpretação, de acordo com a letra do regulamento, parece que se está determinando, por meio de simples Decreto Presidencial, que se a pessoa fizer a declaração falsa de que tem cofre ou local adequado com tranca para guardar a arma e munição, essa conduta passaria a integrar o tipo penal do artigo 13 da Lei 10.826/03.
O artigo 13 do Estatuto do Desarmamento diz respeito à conduta omissiva ou negligente quanto às cautelas necessárias ao impedimento de que menores ou deficientes mentais se apoderem de arma de fogo que esteja na posse ou seja de propriedade do infrator. A pena prevista para esse tipo penal é de detenção de 1 a 2 anos e multa.
A impressão inicial, de acordo com uma interpretação literal do dispositivo, é a de que a declaração falsa e o posterior descobrimento dessa falsidade, independente de mais nada, geraria responsabilização criminal de acordo com o artigo 13 da Lei 10.826/03.
Ora, isso seria a criação indevida, violando o Princípio da Legalidade e usurpando função legislativa (violando, portanto, também a tripartição de poderes), de conduta criminosa que não era prevista no dispositivo até então – antes do Decreto em estudo. O simples fato de alegar ter um local adequado de guarda da arma ou munição não era até então previsto no tipo penal em comento.
Passaria a sê-lo, nessa interpretação, por meio do novel Decreto 9.685/19 e não de lei. Nesse quadro, não resta a menor dúvida de que existiria uma flagrante inconstitucionalidade no Decreto Presidencial por infração ao Princípio da Legalidade (Reserva Legal) e ao Princípio da Tripartição dos Poderes. Contudo, parece que não é o dispositivo do Decreto 9.685/19 em si que padece de inconstitucionalidade, mas sim uma sua eventual interpretação rigidamente literal.
Em primeiro lugar é preciso atentar para o fato de que o Decreto Presidencial não prevê novo crime ou mesmo novas penas, mas tão somente faz referência ao artigo 13 da Lei 10.826/03, o qual já existe e é previsto em diploma legal e não regulamentar. Além disso, o entendimento de que a simples informação falsa já levaria à responsabilização criminal, não parece ser a melhor interpretação.
O que se infere é que a pessoa deverá fazer a declaração de que tem esse local apropriado e, consequentemente, será a responsável, acaso não o tenha e a arma venha a ser acessada por menores ou deficientes mentais. Inclusive, para que haja o crime é necessário não somente a negligência, mas que realmente e concretamente um menor ou deficiente tenha acesso à arma (CABETTE; SANNINI. pp. 74-75).
A mera negligência, assim como a informação falsa, sem que ocorra efetivo apossamento por menor ou deficiente mental, é fato criminalmente atípico, que poderá ter tão somente consequências administrativas, tais como a perda do direito de posse por falta de cumprimento de requisito regulamentar.
Parece, inclusive, viável reconhecer que o texto do Decreto 9.685/19 tem por intento tão somente deixar claro o fato de que a eventual posse de arma de fogo obtida mediante declaração falsa de que há um lugar seguro para sua guarda, irá, em caso de apossamento efetivo por menor ou deficiente, levar à responsabilização criminal respectiva do infrator de acordo com a lei já existente e aplicável à espécie.
Portanto, o dispositivo nos parece mesmo dispensável, mas não necessariamente inconstitucional, a depender da sua devida interpretação e aplicação. Essa é a única interpretação viável constitucionalmente para o atual artigo 12, § 10, do Decreto 5.123/04.
Diga-se de passagem, que nem mesmo por eventual crime de Falsidade Ideológica (artigo 299, CP), poderá ser responsabilizado o requerente de posse de arma de fogo que fizer tal declaração inverídica. Ocorre que, segundo doutrina e jurisprudência dominantes, declarações que estão sujeitas à fiscalização de órgãos competentes não configuram falsidade ideológica.[2] E, logicamente, tal declaração, em sua veracidade ou falsidade, poderá e deverá perfeitamente ser aferida pelo órgão com atribuição para tanto.
Partindo para o item “b” acima mencionado, pode haver alegação de que o artigo 2º, do atual Decreto 9.685/19 teria operado “abolitio criminis” com relação a todos quantos tenham armas sem o devido registro regularizado. Isso porque tal dispositivo promove uma renovação automática por 10 anos dos registros de arma de fogo expedidos antes da publicação do referido regulamento.
Dessa forma, se alguém tinha uma arma de fogo em sua casa com registro vencido, não mais estaria incidindo em crime do artigo 12 da Lei 10.826/03, eis que o documento foi renovado automaticamente.
Assim sendo, já surge, por exemplo, Aury LOPES JÚNIOR (Instagram), se manifestando pela ocorrência do fenômeno da “abolito criminis” para os casos de eventuais processados ou investigados por posse ilegal de arma de fogo devido a estar o respectivo registro com prazo de validade vencido.
Ora, se há alguém sendo processado ou respondendo a investigação criminal por suposta infração ao artigo 12 da Lei 10.826/03 apenas porque tinha uma arma registrada, mas tal registro havia expirado o prazo sem renovação, tal processo ou investigação é ilegal, devendo ser trancado por via de “Habeas Corpus”.
E isso não por força de “abolitio criminis”, mas porque se trata de fato atípico, já reconhecido com bastante segurança pela doutrina e pela jurisprudência, havendo, inclusive posicionamento adotado pelo STJ, conforme várias decisões e, especialmente, de acordo com o Informativo nº. 572 da aludida Corte da Cidadania (Cf. CABETTE; SANNINI. pp. 65-66).
O registro com prazo de validade vencido constitui ilícito meramente administrativo, não criminal, segundo a jurisprudência. É claro que se tem ciência de que tal posição jurisprudencial e doutrinária não tem efeito vinculante e que, como o próprio Lopes Júnior salienta, pode haver pessoas processadas indevidamente.
No entanto, isso não nos parece ser o suficiente para reconhecer ocorrência de “abolitio criminis” por via regulamentar. O caminho, como já frisado, seria o trancamento por via de “Habeas Corpus” devido à atipicidade. Não pode existir, é um contrassenso, “abolitio criminis” de conduta reconhecidamente atípica!
Doutra banda, se alguém não tem o devido registro de arma, o Decreto 9.685/19 não abre prazo, como já se fez em outras ocasiões, para regularização de armas clandestinas. Apenas e tão somente promove a renovação automática dos registros de arma já existentes que foram expedidos antes do Decreto. Isto, pois, não se pode, por meio de ato infralegal, alterar um prazo estabelecido por lei, no caso, o Estatuto do Desarmamento.
A medida é justa, pois que pessoas que tiveram registros anteriores contariam com prazos menores que aquelas que agora comprarem e registrarem legalmente suas armas. Trata-se de um critério de justiça e isonomia no campo administrativo. Nada é dito a respeito de quem tem arma clandestina.
Essas pessoas continuam normalmente respondendo pelo crime do artigo 12 da Lei 10.826/03 e, inclusive, não ganham novo prazo para regularização dessas armas. O Decreto Presidencial, como já dito, se refere estritamente aos registros de arma expedidos antes de sua publicação, o que pressupõe que se está tratando de armas regularmente registradas. Portanto, não há espaço para se falar em “abolitio criminis”.
A situação difere bastante das reiteradas renovações legais do prazo para regularização de armas clandestinas quando da aprovação do Estatuto do Desarmamento. Naquelas ocasiões, havia realmente um prazo para regularização de armas sem registro, o que não ocorre com o Decreto 9.685/19, não sendo adequada a confusão entre aquelas antigas renovações de prazos para regularização de armas clandestinas e a atual renovação automática de registros já existentes.
Conclusão
Por fim, entendemos que o debate está aberto quanto à discussão da (in)constitucionalidade com a criação de conduta criminosa por via do Decreto 9.685/19 e não de lei, diante do novel artigo 12, § 10, do Decreto 5.123/04, com sua nova redação, não obstante nosso entendimento seja pela constitucionalidade a depender tão somente da interpretação e aplicação dada ao dispositivo regulamentar em conjunto com o artigo 13 da Lei 10.826/03.
Ademais, entendemos que de fato não se operou à “abolitio criminis” com o novo Decreto em cartaz, a despeito da celeuma da ocorrência ou não de “abolitio criminis” com relação às pessoas que tenham armas de uso permitido regularizáveis quanto ao prazo do registro (mera renovação do registro já existente). Sem dúvida alguma não houve “abolitio criminis” para armas clandestinas e não meramente com o prazo de validade do registro vencido.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. Salvador: Juspodivm, 2018.
DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
LOBEL, Fabrício, AMÂNCIO, Thiago. Pró Armas veem timidez em decreto de Bolsonaro; críticos preveem piora da violência. Disponível aqui, acesso em 15.01.2019.
NOTAS
[1] LOBEL, Fabrício, AMÂNCIO, Thiago. Pró Armas veem timidez em decreto de Bolsonaro; críticos preveem piora da violência. Disponível aqui, acesso em 15.01.2019. Para maior interação a respeito do debate e dos argumentos pró e conta o armamento civil, veja o leitor o livro de autoria dos subscritores Eduardo Luiz Santos Cabette e Francisco Sannini Neto: CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 27 – 36.
[2] Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 955. Vide também DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 863. V.g. “Não existe falso ideológico em documento sujeito a verificação (TJSP, RT 779/548, HC 278.762-3/1, Bol. IBCCr 89/441, RJTJSP 170/297, RT 602/336; TRF da 3ª. Região, JSTJ e TRF39/451; TJRS, mv – RJTJRS 165/78; TRF 1ª. Região RT 792/722)
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