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A defesa no Inquérito Policial

O inquérito policial é, talvez, uma das principais fontes de nossos problemas no processo penal brasileiro e, isto, sob diversos vieses.

A precária estrutura com que nossas policias judiciárias, na imensa maioria das vezes, trabalham, exige dos agentes uma atuação quase que milagrosa para poder tentar vencer o volume de trabalho que lhes cabe.

Faltam agentes, faltam equipamentos, faltam estruturas investigativas que permitam realização de perícias, faltam condições de trabalhos de inteligência policial, dentre tantas outras faltas. Mas, a falta é constitutiva (LOPES JR) e representa uma enormidade fonte de problemas nos processos que decorrerão destes inquéritos.

A polícia se vê, muitas vezes, tendo de selecionar o que investigar e não podendo conceder o devido tratamento para todos os fatos delituosos postos sob investigação e disto resultam muitos inquéritos policiais problemáticos.

Todos perdemos com isto, a Polícia que não consegue ter condições de realizar o seu trabalho, o Ministério Público que terá de fazer uma acusação com frágeis elementos investigatórios, a defesa que poderá ver um inquérito frágil valer como prova, o Judiciário que, pela fragilidade dos elementos, terá dificuldade no julgamento do caso penal e a sociedade como um todo que vê potencializado os riscos da impunidade (ao não punir um culpado) ou da injustiça (ao punir um inocente).

Todos saímos derrotados, na medida em que a impossibilidade de alteração da situação posta, fez com que o sistema tivesse de se adaptar ao trabalho com o inquérito desta forma, o que faz com que a qualidade dos elementos indiciários reduzissem o grau de prova exigido para um julgamento do caso, isto é, a impossibilidade de melhor produção probatória levaria o Ministério Público a não obter decisões condenatórias, o que, em muitos casos seria totalmente injusto, o que levou o judiciário a fazer relativizações quanto ao alcance dos elementos de prova.

Em síntese, ou se descia a régua em relação ao nível de exigência e de qualidade probatória ou todos os Acusados seriam absolvidos por insuficiência de provas, o que, obviamente seria inadequado e injusto.

O problema são os custos disto, os efeitos desta relativização dos elementos de prova, que coloca a palavra da autoridade policial, muitas vezes, isolada como elemento suficiente para um juízo de culpabilidade de um sujeito.

O inquérito policial tem seu problema, a meu ver, mais do que na sua inquisitoriedade e no seu sigilo, no valor de prova que acaba sendo dado aos elementos de investigação.

Se soubéssemos da fragilidade dos elementos policiais e, com base nisto, emprestássemos ao inquérito o valor de, tão somente, embasar uma denúncia e lançássemos ao titular da ação penal (Ministério Público) o dever de produção probatória nos autos de um processo criminal, os problemas seriam menores.

Mas, infelizmente, a imensa maioria de nossos processos penais se embasa, tão-somente em depoimentos testemunhais, revestidos de contradições e que são alterados no curso do processo penal, por fatores que vão desde a não legitimidade do depoimento prestado na polícia até o medo do réu, passando pelo inevitável efeito do tempo sobre a memória.

A situação se reveste de grande gravidade, quando, mesmo sabedores das dificuldades dos inquéritos policiais, não raras vezes temos condenações amparadas nestes elementos.

O Art. 155 do CPP tenta impedir uma condenação com base apenas no inquérito policial, mas o termo exclusivamente estrategicamente colocado na redação do dispositivo de lei, permite ao juiz que, convencido com os elementos do inquérito, fundamente a sua decisão com base nestes, bastando uma envernizada argumentativa nas suas razões de decidir, trazendo alguma prova do processo para dar uma aparente legitimidade nesta decisão.

Com isto, a atuação defensiva necessita compreender estas situações e descer ao inquérito policial e lá fazer o acompanhamento que lhe permita os questionamentos sobre os elementos lá produzidos.

A defesa em um processo penal se inicia com o chamado do indivíduo e, nesta primeira conversa (seja no escritório ou numa cela da delegacia) a defesa tem que começar a ser construída.

O postergar da atuação para o oferecimento da denúncia cobra um alto custo, pois deixamos o juiz se convencer com a fala de apenas uma das partes e, agora, chegamos tarde para tentar fazê-lo mudar de ideia.

Como nos ensina GARAPON (1997, p. 317):

 “aquele que julga nunca está completamente isento de juízos antecipados. Assim, paradoxalmente, é menos difícil para ele tomar uma decisão do que alterá-la!”

O advogado precisa saber manusear o Art. 14 do CPP e ter uma atuação atenta no inquérito policial, produzindo os elementos que sirvam para a demonstração de suas teses e questionando os elementos que entende por indevidos.

A atuação é mais trabalhosa, dificuldades de ordem prática são impostas, mas o advogado necessita combater ilegalidades em todas as suas fases.

A luta no processo pela não validação como prova dos elementos do inquérito policial não será abandonada, tampouco reduzida, mas, ao contrário, será fortalecida com o enfrentamento já na fase pré-processual.

É sonho de todos uma polícia com mais e melhores condições, onde um depoimento seja gravado e prestado na presença de advogados, sem necessidade de redução a termo que não consegue captar a totalidade do conteúdo, que o reconhecimento possa se dar na forma que o Código preceitua, que as perícias possam ser realizadas, que haja um efetivo comparecimento ao local do crime e que rompamos o grilhão inquisitório que ainda deposita na palavra do réu a principal fonte de convencimento.

Em uma atuação investigativa adequada e correta, o depoimento do réu é irrelevante, pois outros serão os meios de investigação a formar o juízo sobre a sua responsabilidade penal ou não.

Óbvio que sabemos que operações policiais exigem sigilo e não pretendemos que haja um contraditório amplo em medidas investigativas em curso (por exemplo, buscas e apreensões e interceptações telefônicas) mas isto deve compreender a exceção do inquérito e não a sua regra.

De nada adianta seguirmos apoiados na infundada lógica de que as nulidades do inquérito não contaminam o processo e nos valer dos elementos do inquérito para um juízo de condenação.

Ora, se algo é capaz de justificar a decisão do julgador, deve estar sujeito aos mesmos controles de legalidade e constitucionalidade, do contrário é seleção casuísta, variável de acordo com os interesses do intérprete e isto não resiste a uma leitura constitucional do processo penal.


REFERÊNCIAS

GARAPON, Antoine. O Bem Julgar: Ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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