Quando a Defesa tem o peso da Acusação
Recordo-me que, quando ingressei no curso de Direito, tinha um pré-conceito de que “bandido bom é bandido morto”. Fazia parte da massa dos “cidadãos de bem”. Como é bom amadurecer, como é gratificante o aprendizado!!
Nessa época, ainda como graduando, tinha a certeza de que atuaria no Direito do Trabalho, e, nada contra os nobres e competentíssimos colegas da área, mas, com certeza não era a minha praia.
Eu só não tinha percebido ainda que o Direito Penal já estivesse em minhas veias. Hoje percebo que esse discurso do senso comum era, na verdade, uma tentativa inconsciente de camuflar a minha verdadeira vocação. Sim, ser Advogado Criminalista é acima de qualquer competência uma questão de vocação, pelo menos a meu ver.
E assim aconteceu.
Ainda no terceiro semestre do curso eu fui fisgado por um amor sem precedentes. A sensação era a de que a minha veia porta[1] criminalista havia se rompido e todo o meu ser inundado por esse ramo do Direito.
Assim eu fui apresentado e me casei desde então com Direito Penal/Processo Penal, me graduei e hoje atuo como Advogado Criminalista há cerca de um ano.
Contudo, eu escrevo para relatar uma situação que aconteceu nos dias 19 e 20 de julho de 2017. E, desde já, uma coisa preciso deixar claro: sou Advogado Criminalista quase que excessivamente garantista, defendo e busco a garantia da eficácia das leis penais do nosso país incansavelmente.
Pois bem.
Nesses dias relatados eu tive o prazer de atuar no lado oposto do belíssimo jogo do processo penal, do nosso jogo. Fui convidado a acompanhar uma brilhante Advogada Criminalista que, nesse júri doloroso, representaria a família da vítima como assistente da acusação.
E, como bom acompanhante e sabendo da dificuldade do caso, não poderia deixar de apoiá-la. O caso em questão era doloroso, tendo como vítima uma criança de apenas três anos de idade à época do fato. A tragédia estava instaurada.
Pois esse relato é para isso, para dizer que é doloroso demais ficar do lado oposto à defesa. Sim, eu sei que a justiça precisa prevalecer e não sabemos o dia de amanhã, mas, se assim me for permitido, não quero mais o ônus da Acusação, o dever de acusar outro ser humano.
É profundamente doloroso, pro-fun-da-men-te!
Foram dois dias de muita dor, em vários momentos eu olhava para o Acusado como quem dissesse: “eu estou aí com você, meu lugar é ao teu lado.” Foi um caso pesado, uma criança como vítima e um mínimo de provas que colocavam o réu como suposto autor desta brutalidade.
Sou essencialmente DEFENSOR.
Deixo, não de forma covarde, o ônus da acusação nas mãos do Ministério Público e, desde já, presto as minhas homenagens a esta Instituição, pois pude perceber quão doloroso é a tarefa de acusar.
Compadeci-me com o acusado. Quis em vários momentos abraçá-lo. Quis, por várias vezes, gritar e clamar em meu coração que a Defesa do réu apresentasse uma saída, uma tese mirabolante que nos surpreendesse e alcançasse a tão esperada, absolvição, pois, nesse momento até eu desejava um resultado benéfico ao réu.
Enfim, a absolvição não veio. Mas como aprendi nesses dois dias! Aprendi a jogar o jogo processual, principalmente no Tribunal do Júri, de uma forma que os bancos da faculdade não me ensinaram. Aprendi que a justiça nem sempre será justa.
No início desse texto fiz uma menção a uma veia do nosso sistema digestivo: a veia porta. Durante esses dois dias de julgamento, muito se discutiu a respeito dessa veia e do índice altíssimo de letalidade caso a mesma se rompa.
E foi justamente pelo rompimento desta veia em uma criança de três anos de idade – o que, segundo os médicos que prestaram depoimento, é raro de acontecer –, que o réu foi condenado.
Quando cheguei à minha residência, não pude conter o que contive durante os dois dias de julgamento – as minhas lágrimas – e não, não eram de satisfação, por que não?
Porque eu sou essencialmente defensor e o ofício de acusar é essencialmente doloroso.
NOTAS
[1] A veia porta é um vaso sanguíneo que garante a circulação do sangue desoxigenado dos órgãos digestivos e do baço para o fígado. É uma veia de grande calibre, vinda da fusão entre a veia mesentérica superior e a veia esplênica. Disponível aqui. Acesso em 21 jul. 2017.