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Defesa técnica e democratização do inquérito policial (II)


Por Eujecio Coutrim Lima Filho


No texto anterior discutimos a importância de uma releitura do processo penal a partir dos preceitos constitucionais democráticos (aqui) intimamente ligados à noção de dignidade, inclusive na fase investigativa, resultando na relevância de uma investigação preliminar eficiente e não arbitrária como direito fundamental da pessoa humana. Desse modo, merece destaque a Lei n. 13.245/2016 que alterou o art. 7º, XIV, da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da OAB) e acrescentou o inciso XXI e os parágrafos 10, 11 e 12 ao mesmo dispositivo legal.

Nessa oportunidade teceremos algumas observações sobre o novo art. 7º, XIV, da Lei n. 8.906/94. Em consonância com o art. 5o, LV, da CRFB e a Súmula Vinculante n. 14 do STF, houve o desenvolvimento da disciplina legal sobre o acesso do advogado aos autos da investigação (policial ou não) e a respectiva responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade daquele que impedir o acesso visando prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer vistas judicialmente.

A antiga redação do art. 7º, XIV, da Lei n. 8.906/94 dizia serem direitos dos advogados (…) “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”.

Com a mudança, o citado dispositivo legal passou a vigorar com a seguinte redação: “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital(grifei).

Sobre as alterações pontua-se que, apesar de discutível, principalmente pela ausência de previsão constitucional expressa, têm-se no panorama atual outros órgãos, além da Polícia Judiciária, investigando infrações penais (STF, RE 593.727). Portanto, verifica-se que o texto original do Estatuto da OAB, compatível com a conjuntura de 1994, versava apenas sobre “repartição policial” e “inquérito policial”. Desta maneira, a nova redação expressa que o advogado tem o direito de analisar os autos de qualquer procedimento investigatório (inclusive de natureza não criminal), não apenas o policial (alargando a interpretação da citada súmula vinculante), podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital como, por exemplo, através de fotografias.

Em regra, o acesso do advogado aos autos da investigação não está condicionado à apresentação de procuração[1]. Contudo, conforme norma do art. 7º, §10, do Estatuto da OAB, a procuração será exigida quando se tratar de investigação sigilosa[2]. Neste caso, conforme exigência do art. 5º do mesmo estatuto, é necessário que o advogado esteja munido de procuração. Porém, nos termos do art. 266 do CPP, “a constituição de defensor independerá de instrumento de mandato, se o acusado o indicar por ocasião do interrogatório”. Caso o investigado não esteja presente, tem-se a regra do art. 5º, §1º, do referido estatuto segundo o qual, “o advogado, afirmando urgência, pode atuar sem procuração, obrigando-se a apresentá-la no prazo de quinze dias, prorrogável por igual período”.

O próprio texto constitucional (art. 5o, LXIII, CRFB) assegurou assistência de advogado ao preso. Como forma de garantir o preceito constitucional, essa assistência deve ser aplicada ao inquérito policial, salvo quando se tratar do sigilo interno[3] inerente à eficácia das investigações ainda não realizadas ou não concluídas (LIMA, 2015). Ressalta-se que no curso das investigações podem existir diligências cujo sigilo é indispensável à sua finalidade.

Em relação às diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos, o Delegado de Polícia poderá, de forma fundamentada, delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências (art. 7º, §11, do Estatuto da OAB).

Quanto ao embaraçamento da prerrogativa ora discutida, por parte da autoridade com atribuição para investigar, a Lei n. 13.245/2016 adicionou a regra do §12 ao artigo estudado prevendo responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade daquele que, visando prejudicar o exercício da defesa, negar acesso ao advogado ou fornecer os autos de forma incompleta. Além da responsabilização, o direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente também foi positivado.

Caso o procedimento investigativo esteja concluso para exame da autoridade que o preside, os autos igualmente devem ser disponibilizados ao defensor, sob pena de responsabilidade, desde que, com base na noção de razoabilidade, não atrapalhe os prazos legais que tem de ser respeitados pela autoridade responsável. Nesta hipótese, por haver justa causa, não cabe falar em má-fé do Delegado de Polícia nem em violação de prerrogativa do advogado (SANNINI NETO, 2016).

Portanto, uma análise constitucional do processo penal permite a sua inserção no âmbito dos direitos e garantias fundamentais funcionando como contrapeso aos excessos cometidos pelo Estado, fortalecendo o Estado Democrático de Direito. O Código de Processo Penal (1941) não deve mais ser lido à luz do regime ditatorial que marcou sua promulgação, mas sim à luz da atual ordem constitucional democrática que visa, em especial, a tutela da dignidade da pessoa humana (NUCCI, 2014).


REFERÊNCIAS

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro. COSTA, Adriano Sousa. Lei 13.245/16 e a participação do advogado no inquérito policial. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 3. ed. rev. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014.

SANNINI NETO, Francisco. Lei 13.245/2016: contraditório e ampla defesa na investigação criminal?. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.

TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8. ed. rev. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2013.


NOTAS

[1] Entende-se pela derrogação do art. 13, parágrafo único, II, da Resolução n. 13/2006, do CNMP (que regulamenta o art. 8º da LC 75/93 e o art. 26 da Lei n. 8.625/93, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal), segundo o qual “a publicidade consistirá: (…) no deferimento de pedidos de vista ou de extração de cópias, desde que realizados de forma fundamentada pelas pessoas referidas no inciso I ou a seus advogados ou procuradores com poderes específicos, ressalvadas as hipóteses de sigilo”.

[2] De acordo com o art. 23 da Lei n. 12.850/13, quando a investigação tiver como objeto organizações criminosas, decretado o sigilo pela autoridade judicial competente, o acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa deverá ser precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.

[3] “Devemos diferenciar o sigilo externo das investigações, que é aquele imposto para evitar a divulgação de informações essenciais do inquérito ao público em geral, por intermédio do sistema midiático, do sigilo interno, que é aquele imposto para restringir o acesso aos autos do procedimento por parte do indiciado e/ou do seu advogado” (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 103 e 104).

Eujecio

Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil (MG) e Professor

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