ArtigosInvestigação Criminal

Defesa técnica e democratização do inquérito policial


Por Eujecio Coutrim Lima Filho


Importante fixar que em um Estado Democrático de Direito a investigação policial deve ser realizada dentro dos limites legais. A CRFB de 1988 trouxe uma série de direitos e garantias objetivando preservar o núcleo básico da dignidade da pessoa humana. A eficiência da persecução penal, inclusive na fase investigatória, não está condicionada a violação de direitos fundamentais, os quais também devem ser efetivados no âmbito da Polícia Judiciária. A Autoridade Policial não pode se furtar em viabilizar garantias mínimas e direitos fundamentais do indivíduo, a decisão do Delegado de Polícia deve ser fruto da argumentação e da fundamentação jurídica, conformando-se com os valores constitucionais.

Ademais, ao disciplinar a segurança pública, o art. 144 da CRFB atribuiu ao Estado o dever de preservar a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Ao Delegado de Polícia foi dada a missão constitucional de comandar a Polícia Judiciária, um dos órgãos de segurança. Portanto, considerando que os direitos fundamentais se revelam mais por princípios do que por regras, impõe-se ao Delegado uma maior atuação no campo da interpretação e aplicação das normas jurídicas.

A devida investigação criminal constitucional baseia-se no direito fundamental que tem o indivíduo de ser investigado criminalmente de forma preliminar. Assim, antes de iniciado o processo penal, como justa causa para realização de uma pretensão acusatória, urge a demonstração de prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria, proporcionando ao Estado, por meio do Poder Judiciário que examinará os elementos investigativos e os expostos na respectiva ação penal, exercer o seu poder-dever de punir (SANNINI NETO, 2016).

A filtragem constitucional do Direito se dá através de uma releitura de toda ordem jurídica em consonância com os valores constitucionais. Essa filtragem, somada à elevação de temas infraconstitucionais em normas constitucionais, como é o caso do processo penal, traduz o fenômeno da constitucionalização do Direito que, com a irradiação das normas e valores constitucionais para todos os ramos do ordenamento, inclusive na esfera criminal[1], fenômeno especialmente ligado aos direitos fundamentais, consiste em uma das mudanças decorrentes do neoconstitucionalismo que se desenvolveu sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[2].

O processo penal deve ser relido à luz do atual modelo constitucional. Isto posto, verifica-se que a exclusão da participação do indiciado na fase investigativa se coaduna com o autoritarismo estatal. Com tal característica, Gaviorno (2006, p. 151) infere que “o advento do Estado Democrático de Direito, fundado no valor da dignidade humana, impõe que ao investigado deve ser reconhecida a condição de sujeito de direitos, não mais se sustentando a condição de mero objeto de investigações”.

De tal forma, vislumbra-se a importância do debate acerca da Lei n. 13.245/2016 que alterou o art. 7º, XIV, da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da OAB) e acrescentou o inciso XXI e os parágrafos 10, 11 e 12 ao mesmo dispositivo legal. Primeiramente, como já ventilado tanto no art. 5o, LV, da CRFB quanto na Súmula Vinculante n. 14 do STF, houve o desenvolvimento da disciplina legal sobre o acesso do advogado aos autos da investigação[3] (policial ou não) e a respectiva responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade daquele que impedir o acesso visando prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer o acesso judicialmente. Em seguida, a citada lei inseriu o inciso XXI ao art. 7o do Estatuto da OAB de modo que o advogado passou a ter o direito de assistir atos investigatórios, sob pena de nulidade absoluta.

O presente ensaio não tem o condão de minuciar as alterações realizadas no Estatuto da OAB em virtude da Lei n. 13.245/16, estudo que deverá ser realizado em outro momento. Pretende-se enfatizar a importância da participação da defesa como meio garantidor de direitos fundamentais, por parte do Delegado de Polícia, no âmbito do inquérito policial. De tal forma, legitima-se democraticamente a função constitucional da Polícia Judiciária na investigação e elucidação de fatos criminosos entregando à sociedade um serviço que, ao tempo que não é arbitrário, é eficaz e eficiente na busca da verdade quanto à autoria e materialidade do fato.

Não se pode negar que a Lei n. 13.245/16 proporcionou o amadurecimento do obsoleto entendimento no sentido de que as garantias fundamentais relacionadas ao devido processo legal, como o contraditório e a ampla defesa, não incidem na fase investigativa. Outrossim, Como consequência da incidência das garantias constitucionais e de convencionalidade dos tratados e convenções de Direitos Humanos, a Súmula Vinculante 14 do STF, visando garantir o exercício do direito de defesa, o qual deve ser efetivado pelo Delegado de Polícia, já havia estabelecido o direito do defensor ter amplo acesso aos elementos probatórios documentados (BARBOSA, 2016).

O inquérito policial, principal instrumento de apuração de crimes, saiu fortalecido após o advento da nova lei. Uma persecução penal democrática, fundada nas normas constitucionais, requer a participação da defesa também na fase investigativa. Deve-se superar a ideia reducionista de uma investigação criminal descompromissada com direitos fundamentais (SANNINI NETO, 2016). As transformações legislativas ora estudadas mostram um desenvolvimento na investigação criminal que, sem perder o caráter inquisitivo e sigiloso, se aproxima da aplicação de direitos ligados à dignidade da pessoa humana, desde que não atropele a legítima eficácia da investigação.

Deste modo, considerando-se a possibilidade de ato estatal apto a interferir em direito fundamental do indivíduo, a defesa pode ser exercida na fase administrativa da persecução penal, justificando a participação do indiciado, ressalvada a hipótese de conflito entre direito que se revele no caso concreto de igual ou maior importância, hipótese em que a restrição da participação da defesa deve ser devidamente fundamentada de modo a evitar arbitrariedades por parte da Autoridade Policial. Trata-se da necessidade de democratização do inquérito policial.


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ruchester Marreiros. Lei 13.245/16 exige mais do que o advogado na investigação criminal. Disponível aqui. Acesso em: 27 mar 2016.

BARRETO, Vicente de Paulo. O Fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

GAVIORNO, Gracimere Vieira Soeiro de Castro. Garantias constitucionais do indiciado no inquérito policial: controvérsias históricas e contemporâneas. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direitos e Garantias Constitucionais) – Faculdades Integradas de Vitória, Vitória, 2006.

LOPES JR., Aury. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter “inquisitório” da investigação. Disponível aqui. Acesso em: 27 mar 2016.

SANNINI NETO, Francisco. Lei 13.245/2016: contraditório e ampla defesa na investigação criminal?. Disponível aqui. Acesso em: 27 mar 2016.


NOTAS

[1] Onde se insere a atribuição constitucional da Polícia Civil na apuração de infrações penais (art. 144, §4º, CRFB).

[2] Barreto (2010, p. 79) destaca que com a Constituição de 1988 a dignidade humana passou a fazer parte da cultura jurídica brasileira. “A dignidade humana é, principalmente, um direito do homem que surge em função da necessidade do reconhecimento de outros direitos da pessoa, que se situem para além dos direitos individuais. Essas novas categorias de direitos fundamentais, reconhecidos nos textos constitucionais, aparecem paralelamente ao surgimento de idéias jurídicas como a de humanidade ou de espécie humana”.

[3] É preciso pontuar que o direito de acesso é dirigido ao advogado do investigado, trata-se de uma prerrogativa a ser utilizada na defesa do investigado. Nessa linha de intelecção, o AG. REG. na Reclamação n. 9.789, julgado pelo Tribunal Pleno do STF em 18/08/2010, por unanimidade negou vista aos autos do Inquérito Policial em razão do sujeito não figurar como parte investigada. Tratando especificamente da Lei n. 13.245/2016 Aury Lopes Jr. (2016) afirma que“em momento algum estabelece que a presença do advogado é imprescindível na oitiva de todas as testemunhas e vítima(s), até porque isso seria incompatível com a natureza, objeto e finalidade da investigação preliminar”.

Eujecio

Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil (MG) e Professor

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