Deficiências democráticas para além da PEC 171
Por Chiavelli Facenda Falavigno
Recentemente, muito se tem debatido a respeito da redução da maioridade penal, das inconsistências dos argumentos de ambos os lados, e do aviltamento do ECA – justamente no seu aniversário de um quarto de século! –, bem como das demais instituições e convenções que tem como escopo os direitos fundamentais. Estes, frise-se, foram conquistados a duras penas por crianças e adolescentes desse país.
Em parágrafo extraído do próprio sítio do Supremo Tribunal Federal, oriundo de texto que aborda ter sido um único dispositivo do ECA julgado inconstitucional – o que foi feito dentro das formalidades estabelecidas para tanto, ou seja, por meio do procedimento de uma ADIN- desde sua promulgação, pode-se ler:
Fruto de uma ampla negociação com a sociedade civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é uma norma que tornou a legislação infraconstitucional brasileira compatível com o novo paradigma introduzido pela Constituição Federal de 1998, que passou a atribuir à família, à sociedade e ao Estado a responsabilidade compartilhada de assegurar, com prioridade, os direitos fundamentais de crianças e de adolescentes. A norma contempla a doutrina da proteção integral e reconheceu crianças e adolescentes como titulares de direitos e não meros tutelados.[1]
Contudo, o que se desenvolve, de forma breve, no presente texto, não é o mérito dessa questão. Do parágrafo acima transcrito, o nosso destaque está justo na primeira linha: fruto de ampla negociação com a sociedade civil. O ECA é, portanto, uma proposta que nasceu por meio de estudos, debates e respeito a procedimentos.
Não é de hoje que o medo da violência individual é mais veemente, na sociedade civil, que o medo da violência pública. Ou seja, preferimos sofrer violações e arbítrios por parte do Estado, que passa a ter um poder indiscriminado de punir, do que correr o risco da violência praticada por um indivíduo. A violência privada nos parece, de toda a forma, mais danosa. Afinal, esta nos é lembrada e relembrada todos os dias, por meio da mídia impressa, visual, virtual, imaginária.
Conforme GARLAND, os “excessos” de liberdades e de garantias é que são vistos com desconfiança.[2]
A aprovação – ou mesmo a mera discussão – de uma PEC que visa a alterar um direito fundamental, os quais seriam inalteráveis por constituírem cláusulas pétreas (art. 60, § 4o, IV, da Constituição Federal), promovendo a regressão que foi de todas as formas vedada pela Carta de 1988 – promulgada em um período em que a violência do Estado ainda nos assustava – não é sequer aventada nos debates. Ou seja, antes de se adentrar no mérito da questão, a própria existência da PEC já demonstrava a imaturidade – e instabilidade – de nossa democracia.
Afinal, se uma singela formalidade está atrapalhando os planos e os objetivos imediatistas e de coerência duvidosa de nossos dignos representantes, por que não simplesmente ignorá-la?
Ainda, o ocorrido quando da votação, em que, por uma clara manobra política, novamente em franca contrariedade ao disposto na Constituição (art. 60, §5o), a mesma matéria foi submetida à votação sem obediência ao prazo hábil, causou pouco furor, exceto entre alguns juristas tidos como mais preciosistas. No fim das contas, é, novamente, apenas uma formalidade. Ou não?
Nos últimos meses, tenho me dedicado ao estudo, ainda bastante incipiente, dos mecanismos de justiça de transição. A justiça de transição consiste em procedimentos de restabelecimento da democracia e de respeito a direitos humanos em sociedades que passaram por períodos de profundas violações, principalmente por parte do Estado.
Em obra sobre o tema de BARONA,[3] pode-se começar a aferir as consequências de uma justiça de transição mal feita – ou não feita. Pois o passar do tempo, caros leitores, apaga da memória das gerações vindouras o que não é suficientemente documentado, estudado, refletido.
Na mesma obra, o autor salienta causas que levam um país a optar por meios mais, digamos, parcimoniosos de justiça de transição. Entre essas causas, se encontram a própria condição financeira do país, que não opta em destinar fundos para a realização desses procedimentos, e também a manutenção de elites no poder após a “virada” democrática. Ou seja, mudou o regime, em teoria, mas muitos dos que lá estavam, no poder, se mantiveram, seja social ou politicamente. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
Por fim, quando tratamos de grandes tragédias da história da humanidade, principalmente em termos de violência pública, é inevitável nos remetermos ao regime nazista. Muitos dos monumentos, das obras, dos museus, que são mantidos, e que, sem dúvida, não são agradáveis de serem vistos, tem essa precisa função: a manutenção da memória. Ou seja, são exatamente para que esses momentos de dor sejam eternamente lembrados, e para que, dessa forma, não se repitam jamais. Ao menos não com o apoio da sociedade civil que, em breve, passará a ser sua recorrente vítima.
Assim concluo essas breves linhas. Aliás, não concluo, deixo mais interrogações e ilações que raciocínios claros, em que premissas levem a uma conclusão simples e óbvia. Não quero o simples. Quero o complexo, quero a crítica e a profundidade dos raciocínios complexos. As associações possíveis entre as violências públicas, a justiça de transição deficiente (ou inexistente), a reiteração e a tolerância coletiva ao arbítrio do Estado e de seus representantes, e o futuro de nossa democracia – e, por que não, das próximas gerações de crianças e adolescentes – deixo ao alvedrio do leitor.
Pois penso que essa liberdade, e o tempo destinado na junção dessas ideias, possa torná-las mais claras e, talvez, menos passageiras nas memórias individuais.
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[1] Disponível aqui. Acesso em 23.07.2015.
[2] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. (Coleção Pensamento Criminológico, n. 16).
[3] BARONA, Ignacio Forcada. Derecho Internacional y Justicia Transicional: Cuando el Derecho se convierte en religión. Navarra: Civitas, 2011.