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A delação (ou colaboração) premiada realmente prova alguma coisa?

A delação (ou colaboração) premiada realmente prova alguma coisa? Ela, por si só, é capaz de fundamentar uma sentença condenatória contra qualquer um que seja? A palavra do delator detém o mesmo peso que a palavra de uma testemunha, por exemplo? Com esses questionamentos, declaramos iniciada a coluna desta semana.

Como se sabe, a operação “lava-jato” levantou diversos questionamentos país afora, além de ter colocado o direito penal e o processo penal em evidência nos meios de comunicação em níveis jamais vistos. Com efeito, é comum que nós, profissionais do direito, sejamos interpelados por todos os lados, seja por familiares, amigos, colegas, e até mesmo imprensa, acerca dos mecanismos utilizados durante a condução daquela que é vista como a “maior operação contra a corrupção” deste país.

O processo penal tornou-se, como gosta de ressaltar Rubens Casara (2016, p. 437), um espetáculo, no qual

o fascínio pelo crime, em um jogo de repulsa e identificação, a fé nas penas, apresentadas como remédio para os mais variados problemas sociais (por mais que todas as pesquisas sérias sobre o tema apontem para a ineficácia da ‘pena’ na prevenção de delitos e na ressocialização de criminosos), somados a um certo sadismo (na medida em aplicar uma ‘pena’ é, em apertada síntese, impor um sofrimento) fazem do julgamento penal um objeto privilegiado de entretenimento.

E espetáculo que é, chama a atenção do grande público, que se diverte e se regozija com os trâmites do processo penal mais midiático da história do Brasil.

Dentre os instrumentos utilizados pela “força-tarefa” da operação “lava-jato”, está em evidencia a delação premiada, que, tecnicamente e legalmente, denomina-se colaboração premiada. Com o advento da Lei n. 12.850/2013, que tratou de regular o procedimento de colaboração, o uso de tal mecanismo tornou-se ainda mais difundido. A origem desse instituto não se sabe ao certo, o certo é que o direito anglo-saxão, em especial o Estadunidense, faz uso desse mecanismo há muitos anos, a ponto de que a maior parte dos processos penais da terra de Donald Trump se resolva em “acordos” entre acusação e defesa – é quase insignificante o número de casos que efetivamente são julgados.

Tal instrumento ganhou bastante força no Brasil, sobretudo na esfera popular, quando diversos membros do alto escalão político do país começaram a entregar uns aos outros e a denunciar, junto ao Ministério Público, a existência de supostos acordos de propina entre empreiteiras e políticos.

Desde o primeiro delator, surgiram vários outros e a narrativa foi sendo incrementada no curso do processo, principalmente com a decretação da prisão temporária ou preventiva de muita gente – o que, em realidade, foi o propulsor para inúmeras delações, as quais fundamentaram novas fases da operação e assim em diante. Mas a pergunta que se faz é: devo mesmo acreditar na palavra do delator? Ela prova algo?

Pois bem.

O tema, talvez, mais polêmico acerca do uso da delação premiada reside justamente em seu caráter probatório. Como se percebe, as delações, e não podia ser diferente, partem de “membros” da organização criminosa, o que significa dizer que o delator (ou colaborador) é necessariamente uma pessoa que integrou ou participou dos “esquemas” criminosos e, queira ou não, é diretamente interessada no deslinde do caso penal.

Não obstante se possa argumentar que o participante do grupo detém conhecimento qualificado acerca do funcionamento do organismo criminoso, pois dele fazia parte, também se pode arguir que o delator possui uma grande e real possibilidade de distorção da narrativa a ponto de induzir Ministério Público e Judiciário em erro com o escopo de assegurar os “prêmios” oferecidos em contrapartida ao ato de colaborar. Logo, todo cuidado é pouco.

Como preceitua § 16 do artigo 4º da Lei n. 12.850/2013, nenhuma sentença pode fundamentar com exclusividade nas palavras de um delator, é necessário, para que se possa dar relevância a uma delação, que as palavras do delator estejam corroboradas nos autos. Ou seja, a corroboração é o fator essencial na atribuição de eficácia probatória da colaboração.

A colaboração deve ser racionalizada pelo juízo ao ser valorada, com isso, quer-se dizer que a delação, em vista de suas peculiaridades, não pode ser valorada de maneira temerária, irresponsável. Não se pode olvidar que o delator, em tese, também é o criminoso e é ele que detém o conhecimento do funcionamento da organização.

A par disso, o delator possui um amplo espaço para manipulação da narrativa deixando-a adequada aos seus interesses processuais, indicando pessoas de interesse da acusação como coautores dos crimes a fim de conseguir maiores “prêmios” processuais e penais, inclusive com a possibilidade de perdão judicial. Desta feita, a palavra de um delator, por si, não vale nada.

Cabe relembrar aqui um caso emblemático na Itália de 1983 – talvez o berço da delação premiada no direito continental (como é o caso brasileiro) – no qual integrantes da Camorra, famosa organização mafiosa do velho país, combinaram entre si de delatarem Enzo Tortora como chefe da organização até então acusada de financiar assassinatos, tráfico de drogas, corrupção etc.

Ocorre que Enzo Tortora era um sujeito em evidência na Itália dos anos 80, pois era um apresentador de televisão, logo, a acusação interessou-se bastante pela afirmação de que o mesmo seria um líder criminoso – seria o caso para “parar” a Itália (imaginemos hoje se o Silvio Santos fosse delatado).

Resultado: Enzo Tortora foi preso e condenado a 10 (dez) anos de prisão tão somente com base nos relatos dos integrantes da Camorra, dos quais, muitos receberam benefícios processuais. Entretanto, Enzo Tortora jamais fez parte da organização e teve o azar de ser apenas um sujeito em evidência, o que possibilitou aos criminosos “jogarem” com os interesses punitivos do Ministério Público e do Judiciário e, sobretudo, com a espetacularização do Processo Penal, pois os acusadores, seduzidos pela possibilidade de prender um figurão das telas italianas, se esqueceram de buscar provas seguras disso, cometendo um dos casos de injustiça mais emblemáticos do mundo. Tortora somente foi considerado inocente em 1987 e ainda pela Suprema Corte da Itália – mas aí, obviamente, já haviam lhe ceifado diversas noites de sono e alguns anos de liberdade.

Logo, perceba-se, a delação premiada é um instrumento válido, mas com muitas, mas muitas, ressalvas. Justamente por isso é exigível e necessário que as palavras do delator sejam vistas com extrema cautela pelo julgador e, mais ainda, com forte desconfiança. Uma colaboração premiada não racionalizada poderá culminar na restrição ilegítima da liberdade dos acusados enquanto permite ao delator uma benesse flagrantemente indevida oriunda de mentiras e manipulações argumentativas.

Para que se possa falar em eficácia probatória da delação, antes de mais nada, cabe ao Juiz, quando provocado a homologar o acordo, observar se a narrativa do delator apresenta-se sólida, constante e contínua. Ou seja, os fatos levantados pelo colaborador devem ser narrados de maneira firme, em narrativa linear e sem grandes lacunas e, acima de tudo, devem vir acompanhadas de elementos externos de corroboração como pressuposto de sua credibilidade.

Claro que ao se exigir elementos externos, não se quer a prova cabal dos fatos, até porque, se assim fosse, sequer seria necessário recorrer à delação premiada (espécie de ultima ratio probatória), mas um mínimo de indícios, como detalhes das operações, nomes envolvidos, locais de tratativas etc. O delator deve fornecer dados objetivos (PEREIRA, 2013, p. 173-189)

A palavra do colaborador deve apresentar-se segura, seguidora de uma linha narrativa contínua e coerente, sem cortes ou mudanças drásticas entre depoimentos. As declarações devem reunir os requisitos mínimos de veracidade e início de credibilidade, relatando e fornecendo dados objetivos, consistentes em detalhes da suposta atividade criminosa dignos de razoável aceitação.

Em suma, para que uma delação seja minimamente válida, no quesito probatório, ela deve ter coerência interna (narrativa sólida, constante e contínua) e externa (indícios extrínsecos que corroborem o declarado).

Impende destacar que a delação premiada é um instrumento que deve ser manejado em total e estrita observância aos princípios constitucionais e, principalmente, com absoluto respeito ao estado de inocência dos terceiros eventualmente apontados pelo delator como autores de infrações penais. Não se pode permitir que a palavra desconexa e claudicante de um acusado interfira diretamente no status libertatis de outro.

Outro ponto a se destacar é que o delator não pode ocupar a mesma posição em juízo que uma testemunha, por exemplo, vez que esta não possui interesse direto no fato, mas apenas o presenciou, ao contrário do delator. Na realidade, o delator é uma figura intermediária, pois é réu (ainda que perdoado), logo deve se interrogado, mas suas declarações, em determinados pontos, se confundem a de uma testemunha, pois descreve fatos que viu sendo praticados por terceiros (PEREIRA, 2013, p. 176).

Contudo, por se parte no processo, o delator não tem compromisso com a verdade, mas a mentira, retira-lhe o direito aos benefícios do acordo (sendo essa sua sanção – já ressaltamos em outra oportunidade a inexistência de crime de falso testemunho) e, acreditamos, também excluem suas declarações dos autos, salvo se forem apenas consideradas como confissão dos crimes praticados por ele mesmo, mas sem prejuízo de terceiros.

Além desses pontos, obviamente, poderíamos aqui fazer críticas a forma como são conseguidas essas delações, porém, não seria pertinente neste curto espaço.

Com base nisso, queremos apenas concluir afirmando que a delação, por si, nada prova, mas é somente um indicativo de fatos que devem guiar a atividade investigatória na busca de provas, e seu uso, embora permitido em lei, deve estar amparado no mínimo de racionalidade e parcimônia, pois não se pode perder de vista que num mundo de processo penal midiático, qualquer mentira pode simplesmente destruir a vida de algum inocente, sua reputação e sua imagem. E, acreditem, sentença de absolvição alguma lhe devolverá os anos de suplício. 


REFERÊNCIAS

CASARA, Rubens. Processo penal do espetáculo. In: PRADO, Geraldo; CHOUKR, Ana Cláudia Ferigato; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Processo penal e garantias: estudos em homenagem ao professor Fauzi Hassan Choukr. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada: legitimidade e procedimento. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2013.

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