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Delação premiada como instrumento do direito penal seletivo


Por Gabriel Martins Furquim


A contemporaneidade, estruturada pelo modo de sociedade complexo em que vivemos, tem determinado a transformação do processo penal não como forma de ampliar seu papel de garantia e de limitação, mas como instrumento eficaz para materialização do poder punitivo (VASCONCELLOS, 2015, p. 23): acreditando nas funções declaradas da pena criminal (retribuição e prevenção geral e especial, positivas e negativas), apresentam-se concepções de aceleração procedimental, para que de imediato aplique-se uma sanção criminal; ou para que se saiba desta antes mesmo do final do procedimento abreviado, consequentemente, portanto, previsto (porquanto, negociado), com direitos e garantias relativizados, e sem espaços para a defesa, dentre outras anomalias.

Em meio desse cenário, surge a justiça criminal negocial, com forte expectativa de colaboração do acusado, seja na aceitação de sua responsabilidade penal, seja na incriminação de terceiros, com função declarada para lidar com e para resolver uma nova criminalidade – cuja perseguição é seletiva, como se a alteração e a simplificação do processo penal pudesse impedir o consentimento de tais crimes, relevando, ademais, a ineficiência de o órgão acusador arcar com seu exclusivo ônus: a carga probatória.

Isso abrevia o procedimento para quem colabora, o qual – já tendo reconhecido sua culpabilidade e, em razão disso, negociado as consequências correlatas para minimizá-las – saberá o fim do procedimento, e expande os limites da punição aos terceiros e a outras situações, desincumbindo o órgão acusador da obrigação de comprovar integralmente os fatos – tudo isso com menos onerosidade.

Aliás, o acusado fica constrito a sua capacidade de fornecer elementos de interesse à acusação. Ao revés, a não colaboração gera consequências jurídicas de prejuízo, como prisões cautelares, sequestros de bens, dentre outras reprimendas (GLOECKNER, 2015, p. 316), cujas funções escapariam da que é delimitada no ordenamento jurídico. Assim, exaspera-se, segundo PAVARINI (2012, p. 145), “os termos da negociabilidade – até o extremo da renúncia a punir o condenado em face de sua colaboração, ou então a punir em regime de cárcere de segurança máxima o afiliado ao crime organizado que não colabora”.

A partir desta perspectiva, e já adentrando no panorama brasileiro, marcando por tendências internacionais de expansão de mecanismos premiais, adveio a delação premiada, em particular com a regulamentação dada pela Lei nº 12.850/2013, que não apenas ampliou, senão também definiu as hipóteses de cabimento, as questões procedimentais que a envolve, os requisitos de concessão, a possibilidade de retratação, as consequências jurídicas (LAMAS, 2015, p. 3) e outros aspectos.

A despeito dos problemas que concernem à dogmática, a ascensão de um processo penal como meio eficaz, e que pretende atribuir maior certeza, para a materialização de uma pena, e isso através da justiça negocial com a sua máxima manifestação no instituto da delação premiada, que produz um direito desigual e especial, gera um aumento do valor simbólico da repressão[1], consequentemente, portanto, reafirma-se como instrumento na conservação da seletividade do direito penal (PAVARINI, 2012, p. 146 e 151) e no gerenciamento diferencial da criminalidade conforme a posição de classe do autor (SANTOS, 1981, p. 51-52).

Algo como se a ampliação do sistema penal, decorrente da negociabilidade da justiça através da delação premiada, autorizasse um gerenciamento diferencial da incidência do direito penal e da punição com base na posição em que o autor se encontra na classe social e, também, de quais consequências poderá surgir de sua colaboração para o poder, em que pese o discurso oficial de igualdade. Novo privilégio, porém, que faz com que dita criminalidade (de colarinho branco) apareça ainda como lucrativa.

A ampliação do sistema penal, ao menos neste seguimento, é mais simbólica e ilusória do que material e real, porquanto pessoas que não eram objeto do sistema de justiça criminal nele adentram não apenas para impor à maioria uma pretensa igualdade ao direito penal senão como instrumentos do poder determinado pela estrutura social em que vivemos, mas que na realidade saem dele como se nunca tivessem entrado, isto é, as consequências penais declaradas são nulas ou assaz minimizadas em sua realidade.

E isso porque, malgrado a existência de preceitos normativos que são aplicados rigidamente (e ilegalmente) às massas populares e à criminalidade patrimonial (clientela preferencial do e selecionada pelo sistema de justiça criminal), a pena negociada não encontra limites quantitativos e qualitativos, isto é, penas altíssimas, por exemplo, podem ser fixadas não de acordo com os regimes prisionais estabelecidos na legislação, mas conforme o negócio penal entabulado, cujo cumprimento de pena se dá em condições mais benéficas – por exemplo, prisão domiciliar, o que significa preferir, portanto, espaços de discricionariedade indevida ao princípio da legalidade (ARUY; ROSA, 2015), mais precisamente se trata de concessão de prêmios ilegais, em especial nas situações em que se se depara com uma criminalidade econômica, cujos supostos autores pertencem à classe dominante.

Nesse cenário, o principal propósito seria a restituição de parte do lucro auferido, em tese, com a prática criminosa, porquanto a pena aplicada não impõe efetivamente seus efeitos, a despeito de seu caráter simbólico e ilusório, enquanto as penas atribuídas aos autores da criminalidade patrimonial e de massa – por exemplo, o furto qualificado em concurso de pessoas que são reincidentes (AURY; ROSA, 2016) – são bem maiores e em condições mais degradantes de sobrevivência no cárcere, mesmo que assumam as suas culpabilidades e reparem, se lhes for possível, o dano decorrente de suas ações.

Assim, a criminalidade econômica tem um tratamento diferencial, em particular no que concerne à aplicação de mecanismos de justiça negociada e de delação premiada. Algo normal para o funcionamento do sistema de justiça criminal, porquanto a criminalização se volta para a posição social do autor e não para a gravidade do crime, e daí por que a criminalização da criminalidade econômica, cujos supostos autores pertencem à classe social hegemônica, não produz consequências penais (SANTOS, 2012, p. 13), ao menos efetivas e equiparáveis as que são aplicáveis aos indivíduos selecionados por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos inerentes ao funcionamento deste mecanismo de controle social.

Esse breve ensaio teve a finalidade de expor, ainda que resumidamente e também carente de maiores aprofundamentos, a função real e ilusória do discurso jurídico da delação premiada para compreender seu significado político como instrumento para a seletividade penal e para o gerenciamento diferencial da criminalidade conforme a posição de classe do autor, consequentemente, portanto, como instrumento de um direito penal desigual e seletivo.


REFERÊNCIAS

AURY JR., Lopes; ROSA, Alexandre Morais da. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato. São Paulo: Consultor Jurídico, 2015. Disponível aqui.

________. Delação premiada: com a faca, o queijo e o dinheiro nas mãos. São Paulo: Consultor Jurídico, 2016. Disponível aqui.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e processo penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015.

LAMAS, Maxwell Meissner. A insuficiência do acordo de delação premiada como fonte autônoma para configuração de justa causa ao exercício da ação penal. In: Boletim informativo do IBDPE – Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, Edição 4, Ano 03, Setembro/Outubro de 2015, p. 3-4. Disponível aqui.

PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe Editora, 2012.

SANTOS, Juarez Cirino dos Santos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1981.

________, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. – 5.ed.  Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.

VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espações de consenso no processo penal. São Paulo: IBCCRIM, 2015.


NOTAS

[1] Como resposta simbólica a demanda de pena e de segurança, cf. BARATTA, Alessandro. Funiones instrumentales y simbólicas del derecho penal: uma discusión en la perspectiva de la criminología crítica. In: BARATTA, Alessandro. Criminología y Sistema Penal: compilacíon in memoriam. Buenos Aires: Julio César Faira – Editor, 2004.

GabrielFurquim

Gabriel Martins Furquim

Especialista em Direito Penal. Advogado.

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