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Delegado de Polícia: uma autoridade policial ou jurídica?


Por Francisco Sannini Neto


O curso de Direito tem, entre outras vantagens, o fato de abrir um enorme leque de opções aos seus estudantes, que podem escolher entre várias carreiras jurídicas. Essa escolha, todavia, não é fácil e deve ser feita sem precipitações ao longo dos cinco anos de faculdade.

Entre todas as carreiras jurídicas, a de delegado de polícia talvez seja aquela que mais exija vocação por parte do estudante de Direito, justamente por se tratar de um cargo híbrido, com um aspecto jurídico e outro policial. Aliás, é justamente a faceta policial do cargo que o torna tão diferenciado, seja pelo dinamismo da função, seja pelos riscos a ela inerentes.

Dentro de um “universo concurseiro” onde muitos candidatos escolhem seus cargos com foco na estabilidade financeira, pouco se importando com as funções que serão exercidas, o delegado de polícia não escolhe esse caminho com base no salário constante do edital, mas nas atribuições que lá estão previstas.

Desde que fui aprovado no meu concurso tive a certeza de que não trocaria meu cargo por nenhum outro, sendo que o mais fascinante dessa profissão é exatamente o seu hibridismo jurídico-policial.

Para que possamos compreender o aspecto jurídico do cargo, é imprescindível que façamos uma breve análise histórica que nos remeta à origem do delegado de polícia. Pois bem, em 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, surgiu a Intendência Geral de Polícia, que foi o primeiro órgão com função específica de investigação criminal e chefiado por um desembargador. Ocorre que em virtude da extensão do território nacional, o Intendente Geral de Polícia podia autorizar que outra pessoa o representasse nas províncias, sendo que dessa atribuição nasceu a figura do delegado.

Com a independência do Brasil e após a reforma processual de 1841, a Lei 261, de 03 de dezembro do mesmo ano passou a determinar que os chefes de polícia seriam escolhidos entre desembargadores e juízes de Direito, sendo que os delegados também seriam nomeados entre juízes, tendo, destarte, a atribuição de julgar e punir infratores.

Posteriormente, em 1871, uma nova alteração legislativa cuidou da separação das funções judiciais e policiais, vedando às autoridades policiais a possibilidade de julgar infrações penais. Percebe-se, pois, que o cargo de delegado de polícia está umbilicalmente ligado à magistratura. Não por acaso, as Polícias Civis e Federal são chamadas de polícia judiciária, uma vez que servem de apoio ao Poder Judiciário. Não por acaso, os delegados de polícia exercem, de maneira atípica, funções judiciais, decretando prisões em flagrante, concedendo liberdade provisória mediante fiança ou expedindo mandados de condução coercitiva.

Nesse ponto, é mister destacar as semelhanças existentes entre as fases que compõem a persecução penal, senão vejamos: a-) o processo é instruído pelo juiz e a investigação é instruída pelo delegado de polícia; b-) o juiz deve ser imparcial, sem interesse na causa discutida, assim como o delegado de polícia; c-) em observância ao sistema acusatório, o magistrado deve se manter equidistante das partes, assim como o delegado de polícia no inquérito policial, não sendo, esta autoridade, parte em eventual processo posterior, tendo o dever de promover a investigação com a observância das regras legais e proporcionando a “paridade de armas” entre os envolvidos, tal qual o juiz durante o processo; d-) o juiz deve conduzir a instrução processual de modo a chegar o mais próximo possível da verdade real dos fatos, sendo que o delegado de polícia deve agir da mesma forma, buscando a produção de provas e informações que esclareçam os fatos e promovam a justiça, sem se preocupar se os elementos coligidos irão prejudicar o investigado ou beneficiá-lo.

Frente ao exposto, tendo em vista que ao delegado de polícia foi atribuído pela lei e pela Constituição um poder decisório, apto a restringir direitos fundamentais e, da mesma forma e com a mesma intensidade, assegurá-los, é inegável que estamos diante de uma carreira jurídica. Como decretar a prisão em flagrante de uma pessoa sem dominar o conceito jurídico de crime e todos os institutos que influenciam na sua caracterização?! Como representar por uma medida cautelar sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, sem a técnica jurídica para expor os fatos de maneira adequada e legal ao magistrado?!

A investigação criminal constitui, sem dúvida, uma ciência repleta de técnicas e metodologias essenciais para comprovar a existência do crime e sua autoria. Justamente por isso, os policiais que integram as polícias judiciárias são submetidos a um período de formação em academias de polícia ou escolas de polícia, tudo com o objetivo de prepará-los para o exercício de tão importante mister.

O delegado de polícia, como responsável pela presidência das investigações, deve estar atento e inteirado sobre todas as inovações ligadas à ciência da investigação criminal. Nesse ponto, aliás, nos parece que o modelo adotado pelo sistema jurídico brasileiro representa um avanço se comparado aos de outros países. Isto, pois, em nosso sistema a investigação de infrações penais é presidida por uma autoridade com formação policial, mas também jurídica.

Salta aos olhos, nesse contexto, o respeito demonstrado pelo nosso ordenamento jurídico à figura do investigado, deixando claro que a investigação criminal não pode desenvolver-se de maneira aleatória, ao arrepio das leis e da Constituição. O delegado de polícia com formação jurídica garante que a apuração de crimes evolua sem qualquer violação da lei ou de direitos, assegurando, destarte, que as provas e elementos de informações produzidos nesta fase da persecução penal possam subsidiar o titular da ação penal e até a decisão final do magistrado.

Seria, de fato, um disparate colocar em risco o direito de punir pertencente ao Estado em virtude de uma investigação criminal conduzida às margens da lei, onde se produzem provas ilícitas ou ilegais que não poderão ser utilizadas na fase processual, caracterizando um verdadeiro “Estado Policial”. Em contraponto, a existência de uma autoridade com formação jurídica no comando da investigação demonstra que vivemos sob o império de um “Estado Democrático de Direito”, onde são respeitados os direitos e garantias individuais, não havendo espaço para o chamado “Direito Penal do Inimigo”.

É preciso ficar claro que a essência policial do cargo de delegado, diferentemente do que muitos possam imaginar, não se restringe aos aspectos operacionais da função, mas, sobretudo, ao domínio de técnicas investigativas que viabilizem a identificação de fontes de prova aptas ao esclarecimento do delito.

Em conclusão, podemos afirmar que o inquérito policial, como principal instrumento de investigação criminal, deve acompanhar as evoluções tecnológicas e jurídicas, cabendo ao delegado de polícia, como titular deste procedimento administrativo de polícia judiciária, manter-se atualizado sobre as técnicas de apuração de crimes e, ao mesmo tempo, não descurar das inovações legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias. Deveras, somente uma autoridade com uma formação híbrida (jurídica e policial) é capaz de atuar nesse cenário, o que vai ao encontro de um ideal de justiça característico dos Estados Democráticos de Direito.

_Colunistas-FranciscoNeto

Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

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