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Delitos de perigo são legítimos?

Os delitos de perigo são vistos hoje como um instrumento relevante na atividade de controle de condutas socialmente desvaliosas.

Porém, não se pode perder de vista que seu uso cada vez mais acentuado clama por uma racionalização, sob pena de se possibilitar uma criminalização intensa, sem, contudo, se ter um conteúdo efetivo, utilizando-se essa categoria delitiva de maneira vazia e, por conseguinte, longe de qualquer preceito mínimo de garantias fundamentais – sobretudo quando trata-se da categoria de perigo abstrato.

A legitimidade dos delitos de perigo, notadamente de perigo abstrato, com isso, deve ser retirada a partir da leitura que se faz do princípio da ofensividade, haja vista que toda categoria relacionada à proteção/tutela de bens jurídicos exige essa leitura. “O bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando a ofensa” (BATISTA, 2011, p. 93).

Como assevera Fábio Roberto D’Avila (2014, p. 13-14), um direito penal funcionalizado a partir da ideia de proteção subsidiária de bem jurídicos afasta da norma incriminadora condutas baseadas no mero dever de obediência aos interesses do Estado.

Ou seja, há uma efetiva limitação – aliás, severa limitação – no âmbito de condutas as quais o Estado pode sancionar.

Um direito penal com função de proteção subsidiária de bens jurídicos exige, para que se possa incriminar uma conduta, não só a existência de um bem jurídico, mas também uma ofensa a tal bem.

Somente constatar um bem jurídico como objeto legítimo de tutela penal não é fundamento apto à criminalização de condutas. A ofensividade é mister.

“Afinal, reconhecer o direito penal como instrumento de tutela de bens jurídicos e, ao mesmo tempo, menosprezar a dimensão correspondente à ofensa desses mesmos bens, satisfazendo-se, assim, com ilícitos penais meramente referenciados a um determinado bem jurídico, é o mesmo que afirmar que, para a proteção de bens jurídicos, devemos proibir condutas não ofensivas a bens jurídicos, o que, quanto a nós, para além de consistir em um claro equívoco metodológico, conduz a uma efetiva subversão da lógica crítico-garantista que deve perpassar a noção jurídico-penal de tutela de bens jurídicos” (D’AVILA, 2014, p. 14)

Assim, o princípio da ofensividade, como consagrado doutrinariamente, merece ser lido sob sua dupla face: i) a de guia da atividade legislativa, ao passo que exige a construção do tipo penal calcada num conteúdo real de ofensa a bens jurídicos (servindo como parâmetro à política criminal); e ii) como limitador da atividade judicial, pois exige que o julgador perquira a real ofensividade, no plano concreto, ao bem jurídico protegido pela norma penal violada (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 390).

Disso infere-se que não há como persistir a leitura comumente feita pela doutrina que enxerga nos delitos de perigo, sobremaneira os de perigo abstrato, numa visão estritamente formalista, pela qual os delitos de perigo partem de uma presunção absoluta de perigo (juris et de jure).

Há que se fazer uma construção dogmática amparada num conteúdo mínimo de ofensividade, retirando-se um conteúdo material do ilícito penal (D’AVILA, 2014, p. 16).

Destarte, não há razão para se sustentar os delitos de perigo sob uma ótica de “situação perigosa hipotética presumida”, como o faz o professor Renato de Mello Jorge Silveira (2006, p. 115) ou os professos André Callegari e Eugenio Pacelli (2015, p. 208).

Esse conteúdo de ofensividade dos crimes de perigo deve ser extraído a partir da noção de “cuidado”.

Como se pode inferir das lições de Wittgenstein (1996, p. 109-112), o ser humano, para existir no mundo, precisa do outro, pois não existe linguagem privada.

Para que exista comunicação, necessita-se de, ao menos duas pessoas, o receptor e o emissor, logo, o significado de algo é dependente do conjunto de significantes que o rodeiam, sendo a linguagem um veículo do pensamento.

A mesma lógica aplica-se quando falamos de “cuidado” entre os seres. Como explica Eduardo Sanz de Oliveira e Silva (2005, p. 254), não há ser sem o outro, pois o ser somente existe na medida em que se identifica com o outro e a ele se contrapõe.

Na mesma esteira, apenas podemos afirmar ser únicos quando, em contraposição com o outro, nos enxergamos como diferentes.

Dessa premissa, a propósito, podemos retirar o fundamento ontoantropológico do próprio direito penal, vez que o reconhecimento e o respeito pela diferença do “ser-com-o-outro” é o que justifica as proibições, pois se exige mais que a simples tolerância à existência do outro.

A fundamentação ontoantropológica, pois, compreende o direito penal a partir da “relação comunicacional matricial de cuidado-de-perigo” (BUONICORE; TEIXEIRA NETO, 2015,)

A dimensão existencial do homem é dependente do cuidado (SCHMIDT, 2015, p cheap generic strattera. 208). Cuidado com os outros, cuidado com a ausência de cuidado, cuidado contra o perigo com o outro, ou, melhor dizendo, “cuidado-de-perigo”.

O legislador penal deve avaliar se o resultado desvalioso, apresentado sob o formato de “dano/violação” ou “perigo/violação”, foi suficiente para quebrar essa relação de cuidado-de-perigo, devendo, por isso, ser criminalizada a fim de propiciar a proteção.

“Como se observa, cuidado e perigo são duas dimensões de uma mesma realidade na constituição ontoantropológica do homem em sociedade, do ser-aí (Dasein) junto aos outros seres-aí (Mitsein)” (BUONICORE; TEIXEIRA NETO, 2015).

Os delitos de perigo, ao contrário do que se pensa comumente, não representam a antecipação da ofensividade de uma conduta dentro de uma ótica de presunção absoluta de perigo.

Os delitos de perigo apenas diferenciam-se dos delitos de dano – nos quais há efetivamente a destruição, perda ou diminuição do bem jurídico – no que se refere à intensidade da proteção, como nos ensina Andrei Zenkner Schmidt (2015, p. 211).

Mas a leitura acerca da ofensividade continua sendo a mesma, vez que não se pode admitir, dentro de um panorama constitucional e garantidor do direito penal, que se admita um delito sem qualquer ofensa ao bem jurídico.

Ao se tipificar um delito de perigo, o direito penal tem por meta a proteção em face de uma conduta que, fosse tipificada como um delito de dano, se muito, seria equiparada à tentativa.

Com isso, o que se quer não é buscar uma situação futura, ainda não perpetrada, mas uma ação que esteja acontecendo, a qual carrega, por si, um desvalor, ainda que não ocasione um ataque ao bem jurídico tão intenso quanto um delito de dano (SCHMIDT, 2015, p. 211).

Como melhor afirma Andrei Zenkner Schmidt (2015, p. 211-212), in verbis:

Significa reconhecer que “o desvalor do resultado não se encontra deslocado em um ponto futuro, consistente em um provável dano/violação cuja elaboração da norma de perigo intencionaria evitar, mas em uma situação atual, já em si mesma dotada de desvalor”.

Os delitos de perigo “são possuidores de um autêntico desvalor de resultado e, por isso, traduzem fatos em si mesmo ofensivos a bens jurídicos”.

É a aceitação de que o perigo, enquanto representação normativa da relação comunicacional de cuidado-de-perigo, é um autônomo objeto real, “um real construído” dotado de unidade jurídica peculiar que não necessita de dano/violação para justificar seu caráter ofensivo.

Representa “um estádio relativamente ao qual é legítimo prever como possível o desencadear de um dano/violação para com um bem jurídico”, possibilidade esta que, detendo um desvalor em si, permite identificar uma ofensividade que lhe é peculiar (grifos no original).

Em suma, a noção de cuidado-de-perigo deve ser vista como uma ofensa que culmina, sim, num resultado desvalioso. “O perigo em direito penal é constituído por dois elementos: a probabilidade de um acontecer e o caráter danoso do mesmo” (FARIA COSTA, 1992, p. 630).

A legitimação da tipificação do perigo, pois, decorre da própria conduta do pôr-em-perigo.


REFERÊNCIAS

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BUONICORE, Bruno Tadeu; TEIXEIRA NETO, João Alves. A fundamentação ontoantropológica do direito penal: por uma concepção dogmática de resistência ao pensamento funcional. Revista dos Tribunais, v. 954, p. 257-274, 2015.

COSTA, José de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992.

D’AVILA, Fábio Roberto. O ilícito penal nos crimes ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. Revista do Ministério Público (Rio Grande do Sul), v. 75, p. 11-33, 2014.

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de direito penal; parte geral. São Paulo: Atlas, 2015.

SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e. Direito penal preventivo e os crimes de perigo: uma apreciação dos critérios de prevenção enquanto antecipação do agir penal no direito. In: COSTA, José de Faria. Temas de direito penal económico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.113-126, 2005.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

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