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Delitos, tipificação e condutas desviantes

Delitos, tipificação e condutas desviantes

Para que determinada conduta seja considerada um delito, torna-se necessária sua tipificação, o que decorre do Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal previsto tanto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, quanto no artigo 1º do Código Penal, por meio do qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Notadamente, o mencionado princípio tem como finalidade coibir os abusos e excessos que possam vir a ser cometidos pelo poder estatal, limitando o seu poder punitivo e conferindo garantias aos cidadãos.

Corroborando com o exposto, leciona Cleber Masson:

Preceitua, basicamente, a exclusividade da lei para a criação de delitos (e contravenções penais) e cominação de penas, possuindo indiscutível dimensão democrática, pois revela a aceitação pelo povo, representado pelo Congresso Nacional, da opção legislativa no âmbito criminal. De fato, não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal (nullum crimen nulla poena sine lege).

Nesse sentido, podemos afirmar que tal princípio tem a função de orientar o legislador e o aplicador do Direito Penal, pois, como dito anteriormente, para que uma conduta seja considerada um delito deve a mesma estar prevista em lei.

Vale destacar que, por se tratar de um princípio, não pode o mesmo ser desrespeitado e ter sua aplicabilidade mitigada, haja vista que decorre de valores fundamentais e essenciais para a manutenção do sistema jurídico, conforme aduz Celso Antônio Bandeira de Mello, senão vejamos:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

Ainda que seja imprescindível a previsão legal para que determinada conduta seja considerada um delito, não podemos perder de vista que a sociedade e os grupos que a formam são norteados por outras regras sociais, as quais nem sempre estarão positivadas, mas informais.

Neste diapasão, tem-se que os delitos, ou melhor, determinada conduta será tipificada como um delito, quando sua implicação infringir ou representar uma ameaça aos grupos dominantes, o que nos permite afirmar que o delito é uma construção social e decorre das complexas interações havidas entre os referidos grupos.

É neste contexto, que a conduta que fugir à regra, ou melhor, a conduta que se destoar da média comum será aquela que será tida como desviante, e, por conseguinte, terá grande probabilidade de ser tipificada como um delito, conforme coaduna Howard S. Becker, ipsis litteris:

A concepção mais simples de desvio é essencialmente estatística, definindo como desviante tudo o que varia excessivamente com relação à média. Ao analisar os resultados de um experimento agrícola, um estatístico descreve o pé de milho excepcionalmente alto e o pé de milho excepcionalmente baixo como desvios de média. De maneira semelhante, podemos descrever como desvio qualquer coisa que difere do que é mais comum. Nessa concepção, ser canhoto ou ser ruivo é desviante, porque a maioria das pessoas é destra ou morena.

Assim, o desvio é uma infração a uma regra geralmente aceita, a qual pode ser positivada ou meramente decorrer de uma convenção social, ressaltando que esta última terá grande probabilidade de ser positivada, o que representará a exteriorização do sentimento social de reprovação da respectiva conduta, tornando-a um delito.

Eis perigo, pois, tratando-se o delito de uma construção social e sendo o resultado da complexa interação entre grupos e indivíduos, bem como levando em consideração a diversidade cultural destes, tem-se que a reprovação de uma simples diferença ideológica ou até mesmo cultural, poderá classificar o respectivo indivíduo como infrator, ainda que sua conduta não atinja qualquer bem jurídico protegido, uma vez que será julgado por qualquer elemento ou característica que o diferencie do senso comum.

Pois bem, o perigo resta evidenciado quando a reprovação da conduta denota um julgamento parcial, concebido pura e simplesmente por um conceito pré- formulado, como ocorre, por exemplo, com a tentativa de criminalização do funk, e como já ocorre com a criminalização da pobreza nas abordagens policiais.

Insta salientar que a simples tipificação de determinada conduta como um delito não enseja sua investigação, apuração e penalização, pois a justiça brasileira é cega e pende sobre vários pesos e medidas, uma vez que o rigor empreendido em face dos grupos e indivíduos mais abastados não é o mesmo atribuído aos empreiteiros, políticos, empresários e tantos outros envolvidos em escândalos nos últimos anos.

Do mesmo modo, a ausência de tipificação de determinada conduta não exime o indivíduo de ser julgado pelos elementos culturais e demais características que definem o grupo a que ele pertença.


REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado – Parte geral – vol.1. – 9.ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015.

BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.


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