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A denúncia pode ser aditada a qualquer tempo?

A denúncia pode ser aditada a qualquer tempo?

O princípio da estabilização da demanda no Processo Civil encontra previsão no vigente Código de Processo Civil, em seu artigo 329, segundo o qual:

O autor poderá:

I – até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;

II – até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.

A questão que se põe, é saber se no Processo Penal, em que está em jogo a liberdade do cidadão, pode ser aplicado tal princípio, ou se o Ministério Público dispõe de ampla liberdade processual para aditar a denúncia em qualquer tempo ou fase do processo, sem quaisquer condicionantes.

À partida, cumpre assinalar que a Constituição da República, no artigo 5.º, inciso LIV, estabelece que ninguém será privado da sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, o que vale dizer, em sede processual penal, é imperativa a estrita observância às regras legais que disciplinam o curso dos procedimentos de natureza criminal (investigação e processo). Em português bem claro: respeito às regras do jogo.

Pois bem. É certo que, para oferecer a denúncia e, com isso, deflagrar a persecução penal em juízo, o Ministério Público pode valer-se de elementos produzidos em inquérito policial, em comissão parlamentar de inquérito, em investigação por ele próprio conduzida ou em quaisquer outros autos ou documentos de onde extraia indícios suficientes de autoria e prova da existência de infração penal.

Inclusive, depois de receber autos de inquérito policial ou outras peças de informação e examiná-los, o Ministério Público dispõe de prazo fixado em lei para adotar uma de três providências: oferecer a denúncia, promover o arquivamento dos autos ou requisitar ou realizar diretamente diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.

Com efeito, qualquer uma dessas três possibilidades será providência a ser adotada depois de exame do material fático disponível, com necessidade de explicitação de fundamentação jurídica da manifestação apresentada, conforme exige o artigo 129, inciso VIII, da Constituição Federal.

Vale mencionar que o artigo 28 do Código de Processo Penal prevê que, em caso de postular o arquivamento dos autos da investigação, o Ministério Público deverá fazê-lo com indicação de razões suficientes. Já o artigo 47 do mesmo diploma legal reza que, julgando necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, o Ministério Público deverá requisitá-los, diretamente, à autoridade que possa fornecê-los.

Quer dizer, se para promover pelo arquivamento de autos de investigação pré-processual ou para requisitar diligências ou informações complementares o Ministério Público deve fazê-lo fundamentadamente, com mais razão ainda quando exerce a função institucional prevista no artigo 129, inciso I, da Carta Magna, de promover a ação penal pública, com o oferecimento de denúncia criminal.

Quando a denúncia pode ser aditada?

O que, modestamente, estas linhas pretendem suscitar é que, depois de o Ministério Público apresentar a denúncia ao Poder Judiciário, estabiliza-se a demanda penal, somente admitindo-se seja aditada a denúncia, na hipótese de surgimento de fatos novos, obviamente, com suporte em elementos de convicção ainda não examinados.

Dito de outro modo, oferecida a denúncia e fixados os limites objetivo e subjetivo do processo penal, não pode o Ministério Público, sem que nada de novo tenha surgido, venha apresentar aditamento à denúncia, para o fim de formular nova narrativa dos fatos já contemplados na peça acusatória inicial.

Não raro se verifica que um membro do Ministério Público apresenta a denúncia e, no curso do processo criminal, outro membro desta Instituição passa a oficiar no feito e, tendo uma visão diferente acerca dos fatos descritos por seu colega na denúncia, promove pelo aditamento da inicial, oferecendo um novo articulado, com outra narrativa do fato e, comumente, com descrição de qualificadoras ou causas de aumento de pena não constantes da acusação original.

Nada mais ilegal e afrontoso das regras do devido processo legal.

Cumpre dizer que a Instituição do Ministério Público tem por princípios a unidade e a indivisibilidade (artigo 127, § 1.º, da Constituição Federal), o que significa que seus membros não falam em nome próprio, mas atuam como membros de uma Instituição.

Não pode o cidadão acusado ficar permanentemente sujeito a um novo entendimento que algum membro do Ministério Público possa ter a respeito dos fatos contemplados na denúncia.

Veja-se que não se sustenta não seja possível aditar a denúncia, seja para acrescentar outras pessoas no polo passivo, seja para acrescentar outros fatos à narrativa inicial. O que não se pode tolerar é que, sem o surgimento de qualquer fato novo ou circunstância que conduza a uma alteração do panorama subjacente à descrição contida na denúncia, possa o Ministério Público, por meio de aditamento, oferecer uma nova narrativa a respeito dos mesmos fatos objetos da peça inicial por ele próprio ajuizada.

Resumindo, formada a opinio delicti, devidamente explicitada na denúncia, somente se emergirem fatos e circunstâncias novas, e que tenham repercussão na tipificação penal do caso, é que tornará admissível o aditamento.

Denúncia aditada e STJ

O Superior Tribunal de Justiça já afiançou entendimento de que o aditamento à denúncia tem por pressuposto o surgimento de fato novo que conduza a uma nova classificação jurídico-penal do fato. Veja-se:

Denúncia (furto na forma tentada). Aditamento (roubo qualificado na forma tentada). Inépcia (procedência). 1. Ao ver, respectivamente, dos arts. 569 e 384, parágrafo único, do Cód. de Pr. Penal, as omissões da denúncia podem ser supridas a qualquer tempo, bem como, ainda no curso do processo, é possível seja aditada a denúncia. 2. O aditamento pressupõe, entretanto, haja fato novo que possibilite a nova definição jurídica do fato. 3. Se o fato é o mesmo ou se o mesmo fato serviu à denúncia como furto e ao aditamento como roubo, impõe-se reconhecer que o aditamento padece de defeito material. De defeito formal também, porque, no caso, não se descreveu em que se teria constituído a violência. 4. Habeas corpus deferido para se reputar inepto o aditamento. (STJ, 6.ª Turma, HC 35.955/ES, Rel. Min. Nilson Naves, julgado em 15.03.2005)

O que esse julgado reconhece, é que a função clássica do aditamento à denúncia é fazer instaurar nova relação jurídico-processual em ação penal em tramitação, seja trazendo para o polo passivo pessoa contra qual inexistia, no inquérito que serviu de base à denúncia, a presença de justa causa, seja articulando a acusação, com a imputação de outros fatos.

De outra banda, conveniente salientar que a figura da mutatio libelli, prevista no artigo 384 do Código de Processo Penal, com redação determinada pela Lei n.º 11.719/2008, pressupõe que a adoção de nova capitulação jurídica do fato, por intermédio de aditamento, ocorra com base em elementos e provas surgidos durante a instrução judicializada.

É o que se infere do caput desse dispositivo legal (Encerrada a instrução probatória…). Pontue-se: fatos, notícias e informações já contidas nos autos anteriormente ao oferecimento da denúncia, não poderão servir de fundamento para o aditamento à inicial acusatória.

Portanto, se no Processo Civil, em que o litígio versa sobre objetos disponíveis, o aditamento ou alteração do pedido e da causa de pedir, após a citação do réu, com maior razão, no Processo Penal, que não trata de objetos disponíveis, não se admitirá possa a denúncia ser aditada a qualquer tempo, salvo na hipótese de surgimento de fato novo que provoque alteração da classificação jurídico-penal dos fatos contemplados na denúncia.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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