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Denunciação caluniosa eleitoral e o veto ao § 3º do art. 326-A do Código Eleitoral

Denunciação caluniosa eleitoral e o veto ao § 3º do art. 326-A do Código Eleitoral

No dia 4 de junho, publicou-se a Lei n° 13.834/2019, que acrescentou à Lei n° 4.737/1965 (Código Eleitoral) o art. 326-A. Esse artigo traz o ora denominado crime de denunciação caluniosa eleitoral, com a seguinte redação:

Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º  A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto.

§ 2º  A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.

§ 3º  (VETADO)

Cuida-se de conduta análoga àquela prevista no art. 339 do CP. Pena, causas de aumento e de diminuição da pena são idênticas, mas a redação típica é  acrescida de um elemento subjetivo especializante (a finalidade eleitoral). Embora o artigo seja uma inovação na Lei Eleitoral, a conduta já era punida anteriormente. Por exemplo, se uma pessoa, com finalidade eleitoral, desse azo à instauração de inquérito policial contra outra, imputando-lhe crime de que a sabia inocente, restaria caracterizada a denunciação caluniosa prevista no art. 339 do CP. Doravante, todavia, o crime é do art. 326-A, em virtude do critério da especialidade para resolução do concurso aparente de normas.

Evidentemente, difere a denunciação caluniosa do crime de calúnia. Neste, o crime se basta na ofensa à reputação da vítima (ou, consoante Mariana Garcia CUNHA e Leonardo Schmitt DE BEM (2018, p. 251), na negação ao respeito à personalidade humana, superada a alocação da honra objetiva como objeto de tutela). Nesse sentido: TSE, RESPE n. 24326, publicado em 14.03.2016.

Na calúnia, não se dá causa – dolosamente – à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou de ação de improbidade contra o imputado (elementares do crime de denunciação caluniosa). A imputação falsa de um fato criminoso se circunscreve à ofensa, não atingindo simultaneamente a administração da justiça. Ademais, a calúnia admite dolo direto ou eventual quanto à falsidade da imputação, ao passo em que a denunciação caluniosa comporta apenas o dolo direto.

Encontramos a calúnia tanto no Código Penal (artigo 138), quanto no Código Eleitoral (artigo 324). Assim como ocorre com a denunciação caluniosa, em ambos os diplomas os crimes são praticamente idênticos, inclusive no que concerne à pena privativa de liberdade. Inegável, porém, que a calúnia eleitoral é especial em relação a calúnia propriamente dita, pois seu texto restringe a aplicabilidade da norma à ofensa irrogada durante a propaganda eleitoral ou para fins de propaganda.

Segundo Mariana Garcia CUNHA e Leonardo Schmitt DE BEM (2018, p. 254), propaganda eleitoral é aquela realizada no período de eleições e a finalidade de propaganda se refere à ofensa que não ocorre durante a propaganda eleitoral, mas visa a alterar a regularidade do processo eleitoral.

Prosseguem os autores afirmando que, embora o critério temporal não seja irrelevante, “deve-se cogitar se a conduta praticada causou interferência negativa  no desenvolvimento do pleito eleitoral” (2018, 255). Parece-nos que a mesma hermenêutica deve ser empregada na denunciação caluniosa eleitoral. É fato que o art. 326-A do Código Eleitoral em momento algum menciona a expressão propaganda eleitoral, mas, ao citar a “finalidade eleitoral”, ingressa na mesma seara das condutas dolosamente prejudiciais ao pleito.

Analisado esse contexto, podemos passar à finalidade do presente artigo, que é tecer considerações sobre o veto presidencial ao § 3º do art. 326-A, cuja redação, por ocasião do projeto de lei aprovado no Congresso Nacional, era a seguinte:

incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído.

Trata-se da propalação ou divulgação da ofensa, conduta que, quando considerados os crimes do Código Penal (arts. 138 e 339), existe na calúnia (art. 138, § 1º, CP), mas não na denunciação caluniosa. Há uma razão para essa construção legislativa: na denunciação caluniosa, a pena abstratamente cominada é mais alta do que aquela reservada ao crime de calúnia porque o comportamento afeta a Justiça ou seus órgãos auxiliares, ao determinar a instauração de um procedimento contra o imputado que não deveria existir; ou seja, além da afetação a um direito da personalidade, há o acionamento indevido das engrenagens da máquina pública, o que consome tempo, esforços e recursos que não precisariam ser despendidos.

Se alguém propala ou divulga a denunciação caluniosa com o objetivo de afetar a honra alheia, atinge apenas o direito da personalidade, mas não a administração da Justiça. Assim, a propalação ou divulgação jamais poderiam ser consideraras formas derivadas de denunciação caluniosa, por faltar-lhes a aptidão para atingir o bem jurídico coletivo.

Nada impede, todavia, sua vinculação ao crime de calúnia, pois, embora a ofensa original já implique lesão ao bem jurídico honra, a difusão dessa ofensa por terceiros – com intenção de macular a reputação da vítima – implica aumento considerável do risco proibido. O desvalor do resultado é basicamente o mesmo da calúnia original.

No Código Eleitoral, a calúnia eleitoral contempla a propalação ou divulgação da ofensa para fins de propaganda (art. 324, § 1º), guardando paridade para com o tipo penal análogo previsto no Código Penal (art. 138). Essa paridade também ocorre com a denunciação caluniosa: seja no art. 326-A do Código eleitoral, seja no art. 339 do CP, não há a incriminação da conduta de propalar ou divulgar a denunciação. Todavia, o dispositivo vetado pretendia incluí-la no contexto do art. 326-A.

Em vista disso, Advocacia-Geral da União, em seu parecer para embasar o veto presidencial ao dispositivo (Mensagem n. 230, de 4 de junho de 2019), sugeriu que a inclusão criaria uma situação de desproporcionalidade. Explicando melhor: como propalação e divulgação de ofensas são condutas que se aproximam do crime de calúnia, equipará-las à denunciação caluniosa, que possui margens penais severamente mais elevadas, seria algo desarrazoado, dada a distinção entre os objetos de tutela. Concordamos integralmente com essa consideração.

Isso não significa, contudo, que as condutas de propalar e divulgar sejam atípicas, razão pela qual não se sustentam as críticas de que o veto permite a impunidade algumas espécies de fake news (anglicismo destituído de conteúdo jurídico, sendo certo que as notícias falsas podem possuir diversas origens e conteúdos, assim como podem ser divulgadas dolosa ou culposamente, o que torna temerário concentrar todas as hipóteses sob um mesmo rótulo).

Caso alguém propale ou divulgue uma ofensa a alguém, imputando-lhe fato definido como crime de forma derivada – ou seja, de forma secundária à calúnia original –, o agente cometerá o crime do artigo 138, § 1º, ou, eventualmente, o do 324, § 1º, nesse último caso se houver a finalidade de propaganda eleitoral. Se alguém pratica uma denunciação caluniosa (artigo 339 ou 326-A) e outra pessoa, para repercutir a ofensa e incrementar a lesão à reputação do ofendido, propala ou divulga o objeto da imputação, igualmente existirá o crime do artigo 138, § 1º, ou, eventualmente, o do 324, § 1º.

Frise-se que, na calúnia derivada, não se fala no tipo penal em propalar ou divulgar a calúnia anterior, o que poderia limitar o alcance do tipo e excluir a denunciação caluniosa, mas em propalar ou divulgar a imputação ofensiva (que existe seja na calúnia, seja na denunciação caluniosa).

O debate jurídico-penal deve sobrepujar preferências políticas e se bastar na técnica. Quando apenas esta é considerada, deixa-se o alarde de lado e verifica-se que o veto presidencial é correto.


REFERÊNCIAS

DE BEM, Leonardo Schmitt; CUNHA, Mariana Garcia. Crimes eleitorais. 3. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.


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