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Desacato é crime?


Por Mariana Py Muniz Cappellari


O desacato é um crime descrito no art. 331 do CP, no capítulo referente aos crimes praticados por particular contra a administração pública em geral. Em virtude de sua pena (detenção de seis meses a dois anos, ou multa), o desacato é considerado como infração de menor potencial ofensivo, sujeito, portanto, ao Juizado Especial Criminal, nos termos da Lei nº 9.099/95.

De acordo com DA SILVA (2015), a origem do crime remonta ao Direito Romano, sendo que foi no Código Napoleônico de 1810 que o delito passou a abranger todos os funcionários públicos de um modo geral, já que o fundamento a tanto seria o de garantir a autoridade dos agentes públicos no exercício de suas atribuições. O nosso Código Penal vigente ampliou o alcance desse tipo, no sentido de considerar também como desacato as ofensas contra funcionário que não estivesse no exercício de sua função, desde que tais ofensas tivessem se dado em razão desse ofício.

Conforme o mesmo autor, o bem jurídico tutelado pelo crime de desacato, no momento, é a respeitabilidade da Administração Pública, no sentido de reforçar o prestígio e a autoridade dos funcionários públicos, em razão da função pública que estes exercem, pois o exercício desta atinge o Poder Público, razão pela qual, no Brasil, as Ordenações Filipinas puniam como crime de lesa-majestade a injúria contra magistrados e seus oficiais.

Sim, mas o que isso importa para o tema em comento? É fato que os Juízes não estão sujeitos tão somente a um Controle de Constitucionalidade das leis, mas, também, a um Controle de Convencionalidade, ou seja, de compatibilidade da nossa legislação com os diversos diplomas internacionais, notadamente de Direitos Humanos, dado não apenas o disposto no art. 5º, §§ 2º e 3º, da CF, mas, também, diante o reconhecimento por parte do STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, de hierarquia supralegal aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, à exceção dos que se coadunam ao disposto no § 3º do art. 5º, da CF, aos quais, então, se daria natureza constitucional.

Nesses termos, nem é preciso dizer que o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tendo, conjuntamente, e, desde os anos 1990, reconhecido a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, submetido, portanto, ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e vinculado as suas decisões, opiniões e recomendações proferidas.

Nessa esteira, portanto, vale aduzir que o Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 1994 analisou da incompatibilidade do delito de desacato com a liberdade de expressão prevista no art. 13.2 e 13.3 da CADH, aduzindo que as leis de desacato não constituem uma restrição legítima da liberdade de expressão, na medida em que o debate político a que dá lugar o direito a liberdade de expressão gera inevitavelmente certos discursos críticos e inclusive ofensivos para aqueles que ocupam determinados cargos públicos ou estejam intimamente vinculados à formulação de uma determinada política pública. Assim, uma lei que ataque esse discurso que se considera crítico da Administração Pública, afetaria o direito humano e fundamental da liberdade de expressão.

Para a CIDH, o que há de mais importante nisso é o fato de que o fundamento das leis de desacato pretende preservar a ordem pública limitando um direito humano fundamental, o qual é reconhecido internacionalmente como a pedra angular em que se funda uma sociedade democrática.

Tanto isso é verdade que o Informe da Relatoria para a Liberdade de Expressão, da CIDH, recomendou aos Estados promover a derrogação das leis que consagram a figura do desacato e que restringem o debate político, elemento essencial ao funcionamento democrático. Na oportunidade, deixou claro que tais leis são contrárias a CADH, gerando, portanto, e aqui somos nós quem refere possível responsabilidade estatal no plano internacional, acaso assim não proceda.

Desse modo, nos parece que o delito de desacato esbarra no chamado Controle de Convencionalidade por incompatibilidade material com a CADH, e, ainda que assim não o fosse, nos parece que o mesmo não teria sido sequer recepcionado pela CF de 1988, pois também incompatível materialmente com os direitos de igualdade e de liberdade de expressão, previstos nos art. 5º, incisos IV e X, da nossa Carta Constitucional, possível, portanto, a aplicação do art. 386, inciso III, do CPP, autorizando absolvição por não constituir o fato infração penal.

Afinal, é bom pontuar com GOMES e MAZZUOLI (2010) quando tratam do direito humano fundamental da liberdade de expressão que

“A disposição convencional em comento está voltada para o Estado, que às vezes restringe (sem poder) esse direito do cidadão, censurando-o ou privando-o de externar seu pensamento ou de expressar sua opinião. Trata-se de direito que constitui um dos pilares da sociedade democrática e uma das principais condições para que os integrantes de um Estado possam desenvolver-se plenamente, sem o temor da censura e da opressão.”


REFERÊNCIAS

DA SILVA, Ivan Luiz in QUEIROZ, Paulo (Coord.). Curso de Direito Penal. Parte Especial. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2015.

GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Pacto de San José da Costa Rica. Coleção Ciências Criminais V.4. 3. ed. São Paulo: RT, 2010.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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