Desacato: o endeusamento dos servidores públicos?
Por Rodrigo César Picon de Carvalho
O crime de desacato vem estampado atualmente no art. 331 do Código Penal de 1940, nos Crimes contra a Administração Pública. Segundo o referido artigo, é crime “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, com penas que variam entre seis meses e dois anos de detenção, ou multa.
Desacatar é, segundo o dicionário, “não guardar o respeito devido a alguém”, menosprezar, tratar com indelicada ou irreverência. Comete desacato, então, quem xinga um funcionário público, quem o humilha, desdenha seu trabalho, dentre outras condutas.
Tal crime nasceu no Código Criminal de 1890, em seu art. 134, que determinava ser crime de desacato “desacatar qualquer autoridade, ou funccionario publico, em exercicio de suas funcções, offendendo-o directamente por palavras ou actos, ou faltando á consideração devida e á obediencia hierarchica”, com penas que variam entre dois a quatro meses de prisão. A intenção do legislador da época era resguardar o respeito e a devida admiração da sociedade com os funcionários públicos, que trabalhavam e movimentavam a máquina estatal; sendo, portanto, representantes do Estado. Tal espírito continuava vigente durante a época de Vargas – quando foi promulgado o Decreto-Lei 2848, de 1940, que implementou o novo e atual Código Penal.
Entretanto, 75 anos já se passaram desde a promulgação do Código Penal de Getúlio Vargas. O respeito e a devida admiração e submissão aos funcionários públicos deixaram de existir com o passar dos anos. Hoje visualizamos todos os funcionários, sendo público ou privado, de maneira igual, sem um estar acima do outro – principalmente por ocasião da promulgação da Carta Magna de 1988, que trouxe a igualdade entre as pessoas como patamar máximo a ser respeitado por todos e a responsabilização do servidor público, por crime de responsabilidade (Lei 1079/50) ou por improbidade administrativa (Lei 8429/92). Não mais existe aquela sensação de o servidor público ser alguém superior ao particular.
Porém, com o ainda em vigor crime de desacato, cria-se uma barreira intransponível entre particular e servidor público, transformando o último praticamente em intocável. Não se pode discutir com um servidor público, discordar de suas opiniões ou atos, defender os seus direitos. Qualquer levantamento de voz por parte do particular é reprimido pelo funcionário público, sob pena de receber voz de prisão por desacato. E ainda que tal conduta seja posteriormente anulada pelo Poder Judiciário, não há qualquer sanção para o funcionário que abusou de seu cargo – e, se houver, é mínima, não cumprindo com suas funções de punir e reprimir.
O crime de desacato praticamente transforma o servidor público em uma espécie de divindade superior – intocável e inquestionável, não podendo o particular nada fazer a não ser abaixar a cabeça e obedecer. É necessário, portanto, desaparecer com tal tipo penal, para que naturalmente a sensação de endeusamento dos servidores públicos se dissipa, por completo, da mente das pessoas e dos próprios servidores, para que estes últimos entendam que são, literalmente, funcionários da população.