Desaforamento no Tribunal do Júri e a comoção social
Por Osny Brito da Costa Júnior
Um das estratégias que o advogado criminalista pode manejar, antes da sessão de julgamento, quando na defesa de um caso de repercussão criminal, é o chamado pedido de desaforamento. Busca-se com a presente medida um julgamento imparcial e não mero simulacro de Justiça.
O Tribunal do Júri apresenta um procedimento escalonado, ou seja, com duas fases: a primeira fase é chamada de Juízo da acusação (jus acusaciones), inicia do recebimento da denúncia e vai até o transito em julgado da decisão de pronúncia, nessa fase, se busca apenas verificar se há indícios suficientes de autoria e prova da materialidade, e sendo positivo, o magistrado prolata decisão de pronúncia (encaminhando o réu para julgamento popular). Já na segunda fase, denominada de Juízo da causa (jus casae), inicia-se com a intimação das partes para apresentar manifestação prevista no art. 422, do CPP, finalizando com a realização da sessão de julgamento e decisão dos senhores jurados.
O desaforamento é um ato em que a instância superior, modifica a regra de competência territorial, o réu é julgado em foro da mesma região, mas diverso daquele em que cometeu o crime, exceção a competência pelo lugar (ratione loci), preferindo-se as comarcas mais próximas (art. 427, CPP).
O primeiro passo para realizar o pedido de desaforamento é saber que o momento oportuno para o seu requerimento, inicia após o trânsito em julgado da decisão de pronúncia e finda com a realização da sessão de julgamento (art. 427, §4, CPP).
O segundo passo do desaforamento é saber que o Juízo competente para o processamento é o Tribunal de Justiça de cada Estado, nos termos do art. 427, §1º, do CPP, recomenda-se pedir efeito suspensivo (art. 427,§2º, CPP), ocasião em que o relator irá fundamentadamente suspender o julgamento, sendo certo a oitiva do juiz presidente, quando a medida não tiver sido pro ele solicitada.
O advogado deve saber reconhecer as hipóteses de cabimento do pedido de desaforamento, para fundamentá-lo e instruir o feito com os documentos comprobatórios, nos termos do arts.427 e 428, ambos do CPP. Senão vejamos:
a) Por interesse da ordem pública;
b) Quando pairar dúvida sobre a imparcialidade do Júri;
c) Quando houver risco à segurança pessoal do acusado;
d) Quando injustificadamente o Júri não se realizar no prazo de seus meses contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia.
Na primeira hipótese, justifica-se no interesse da ordem pública, o julgamento deve ser sereno, seguro, sem obstrução, perturbação ou influências externas, no afã de garantir o livre julgamento pelos senhores jurados.
No segundo item, há dúvida sobre a imparcialidade dos jurados, ocorre nos casos em que a repercussão do crime ganha tamanha intensidade que é capaz de gerar dúvida quanto imparcialidade da decisão, ocasião em que os jurados mesmo sem ouvir as partes e conhecer as provas, já apresentam uma convicção previamente formulada, um exemplo foi o caso Nardoni, em que até mesmo o advogado chegou a ser hostilizado pela população que acompanhava o julgamento, há situações ainda, em que a família do réu exerce grande influência política e econômica na comunidade, o que também pode gerar parcialidade dos jurados (RT 780/525).
Na terceira situação, justifica-se para segurança pessoal do acusado, garantindo a preservação da sua incolumidade física, bem como o devido processo legal, afastando qualquer vingança privada ou justiça com próprias mãos eventualmente perpetrada por populares, exemplo, linchamento, (RT 610/459).
Na última previsão, no caso de atraso na realização do julgamento, no prazo de seis meses contados do trânsito em julgado da decisão de pronúncia, havendo excesso de serviço na Vara do Júri, a defesa pode requerer o desaforamento.
Por fim, destaco ainda a possibilidade da reaforamento, ou seja, o retorno de processo a vara que determinou o desaforamento, quando não mais subsistirem os motivos que o determinaram, in verbis:
“é curial que a decisão concessiva de desaforamento não é imutável. Se no novo foro há, também motivos que autorizam o desaforamento, outro há de ser eleito, nada impedindo, inclusive, o reaforamento…”. (STF- rel. Néri da Silveira –RT 591/390).
No Estado do Amapá, em um famigerado caso de homicídio qualificado que defendo ladeado pela Dra Mara Christian, nosso cliente é acusado de matar um ex- servidor do Ministério Público Estadual do Amapá e membro da comunidade carnavalesca amapaense, no dia 31 de maio de 2015, por asfixia mecânica, fato este que gerou grande comoção pública (veja aqui).
Nesse cenário, após todo o estardalhaço realizado pela mídia aliado aos movimentos para condenação em desfavor de nosso constituinte (ocorrendo um bloco carnavalesco para a vítima), entendo que a parcialidade de eventual Júri na comarca de Macapá, está totalmente viciada e prejudicada.
A comoção pública e pressão da mídia sensacionalista, bem como os movimentos da comunidade carnavalesca em prol da condenação de nosso cliente criam fundadas dúvidas acerca de julgamento imparcial em Macapá, e garantia da ordem Pública, impondo sobre os jurados pressão indevida, dessa forma, o que a defesa busca é apenas um julgamento justo, razão pela qual estamos intentando o desaforamento para outra comarca, com exceção da mais próxima (Santana), pois o fato acarretou comoção regional, atingindo área territorial maior, sendo grande o fluxo de pessoas e informações nessas comarcas vizinhas. (Precedente. HC 84.651-PE, Min. Carlos Britto, STF).
É o primeiro caso conhecido na Capital do Amapá, em que será realizado tal empreitada, como estratégia, anunciamos na impressa a pretensão da defesa, o que gerou repercussão e comentários hostilizando o ato, comentários estes que serão juntados no pedido, reforçando a tese suscitada.
É certo que em casos de repercussão e comoção social, além do julgamento sumário midiático, causam prejuízo a defesa e a legalidade do próprio julgamento, pois os jurados fazem um juramento de decidir com imparcialidade e ditames da Justiça, mas como esperar isso quando há uma campanha para condenação.
Por tal razão, o código estabelece a possibilidade do desaforamento, transferindo o julgamento para outra comarca vizinha, diversa do local do crime, fortalecendo a democracia, a soberania popular e o poder do povo.
“O bom tribuno é forjado no Júri, com a experiência dos casos, assistindo e realizando julgamentos, buscando sempre aperfeiçoar-se na arte da defesa. A advocacia criminal, como afirmava Sobral Pinto, não é profissão para covardes, o Tribunal do Júri, como afirma Ércio Quaresma, não é para aventureiros, e arremato, não é para os fracos. O que está em jogo é a vida/liberdade, jamais vencido até o último voto revelado, mesmo após o transitado em julgado”…