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A descriminalização do aborto é realmente apenas uma questão de gênero?

A descriminalização do aborto é realmente apenas uma questão de gênero?

O Código Penal Brasileiro pune a interrupção induzida (voluntária e forçada) da gravidez de diversas formas distintas, por meio de tipos penais diferentes.

O artigo 124 do referido diploma legal é voltado para a punição do autoaborto; pune-se a conduta da gestante que provoca o aborto em si mesma ou que consente para que um terceiro realize a prática criminosa.

O autoaborto, portanto, é um crime próprio, na medida em que se exige uma qualidade especial do sujeito ativo (ser mulher), e um crime de mão-própria já que não há como se “terceirizar” o ato criminoso; ou seja só o próprio sujeito ativo é quem pode cometer a infração.

Por outro lado, os artigos 125 e 126, respectivamente, destinam-se a punição do terceiro que realiza ou provoca o aborto com e sem o consentimento da gestante.

O terceiro que pratica o aborto sem o consentimento da gestante em virtude da reprovabilidade de sua conduta possui uma pena mais elevada em relação àquele que prática o aborto com o consentimento da gestante.

Nota-se que o aborto, em qualquer de suas modalidades, só é punido a título doloso. Ou seja, não existe a figura do aborto culposo. Não se pune o aborto acidental ou o aborto espontâneo, pois para que o referido crime se configure é necessário que exista o dolo (a intenção) de interromper a gravidez por parte da gestante ou do terceiro que atue como autor ou partícipe na empreitada criminosa.

Todavia, existem situações nas quais não se pune o aborto. A primeira delas é o chamado aborto necessário ou terapêutico (art. 128, I, CP) que é aquele praticado pelo médico para salvar a vida da gestante nos casos em que a continuação da gravidez colocaria em risco a vida da mesma.

Trata-se de uma situação específica de estado de necessidade, na qual sacrifica-se a vida do feto para salvar a vida da mãe. Não havendo necessidade de que o perigo seja atual ou iminente para que o estado de necessidade se configure, pois como adverte alguma doutrina, a possibilidade de risco futuro para saúde da mãe já justifica, por si só, a interrupção da gravidez a título de estado de necessidade.

Uma outra situação na qual não se pune o aborto é no chamado aborto humanitário ou sentimental (art. 128, II, CP), que é o aborto resultante de estupro.

Nesses casos não há que se falar em estado de necessidade, uma vez que o sacrifício do bem jurídico não era exigível por ser de maior valor em comparação com o que prevaleceu. A exclusão da responsabilidade penal nesses casos, portanto, se dá, única e exclusivamente, por razões de convicções do legislador, que entendeu que compelir a mulher vítima de estupro a prosseguir com a gravidez fruto de uma violação seria, além de injusto, desumano.

Assim sendo, é correto afirmar que, apesar de não cometer crime, por questões humanitárias, a mulher vítima de estupro que resolve abortar não tem sua conduta justificada pelo estado de necessidade, mas sim descriminada pela autorização legal.

Temos ainda a situação do feto anencéfalo, que recentemente foi objeto de discussão no STF por meio da ADPF n° 54, onde pleiteou-se a inconstitucionalidade da interpretação na qual a interrupção da gravidez de um feto anencéfalo configura crime de aborto pelo fato de não existir qualquer dispositivo legal autorizando tal prática.

O Supremo na análise da referida ADPF entendeu que impor a manutenção da gravidez nos casos de anencefalia é ir de encontro aos princípios basilares da constituição. Asseverou-se ainda que privilegiar uma gestação na qual o feto não possui qualquer expectativa de vida extrauterina em detrimento da liberdade e autonomia reprodutiva da mulher é desproporcional e desarrazoado.

A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República. (STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Relator(a) Min. Marco Aurélio. Julgado em 12/04/2012.)

Nos parece acertada a decisão do STF a respeito da falta de tipicidade penal na antecipação terapêutica do parto na hipótese de gravidez de feto anencéfalo. Em outros dizeres, o “aborto” eugênico ou a antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia é causa de atipicidade da conduta e não de justificação, já que nesses casos a interrupção da gravidez não representa uma violação ao direito à vida em sentido estrito, uma vez que a possibilidade de vida extrauterina do feto anencéfalo é praticamente inexistente.

Dessa forma elencamos e diferenciamos as três possibilidades de interrupção da gravidez permitidas até o momento, quais sejam, aborto terapêutico, humanitário ou sentimental e eugênico (anencefalia). Valendo ressaltar que as duas primeiras hipóteses possuem previsão legal e expressa no artigo 128 do Código Penal, e configuram causas de justificação do aborto.

Sendo o aborto terapêutico uma espécie de estado de necessidade, e o aborto humanitário uma opção legislativa utilizada para descriminar a conduta típica. Por outro lado, a antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia é resultado da interpretação do STF a respeito do tema e configura uma causa de atipicidade da conduta.

Após essa analise inicial urge responder o problema-pergunta que propusemos logo no início: a descriminalização do aborto é de fato uma questão de gênero? As correntes feministas nos últimos tempos colocaram em pauta o problema do aborto relacionando-o com a questão do gênero e da coisificação da mulher.

Argumentou-se bastante no sentido de que a mulher tem autonomia sobre o seu próprio corpo, e, sendo assim, pode decidir como bem entender sobre a manutenção ou não de uma determinada gravidez. Alegou-se ainda o conservadorismo da legislação brasileira que em contramão com as legislações mundo afora ainda mantém o aborto como crime.

As autoras Martins e Goulart (2016) em texto voltado primordialmente para análise crítica do PL 478/2007 (estatuto do nascituro) asseveram que a emancipação feminina perpassa pela legalização do aborto. De acordo com as autoras a ideia de liberdade consagrada no texto constitucional implica tanto na liberdade de escolha, quanto nas questões relacionadas ao próprio corpo.

Ademais, as referidas autoras afirmam ainda que a seletividade na criminalização do aborto é nítida, na medida em que as mulheres pobres e negras são os principais alvos da incriminação. Asseveram por fim que a manutenção da ilegalidade do aborto faz com que mulheres pobres se submetam cada vez mais a procedimentos clandestinos e coloquem suas vidas em risco.

De fato o direito penal é classista e seletista, mas isso não é algo que se aplique apenas ao aborto, mas sim a grande maioria das incriminações. Sendo assim, justificar a descriminalização do aborto em razão de tal argumento não faz sentido algum.

Por outro lado, em termos de prevenção geral e saúde pública, talvez a criminalização não seja a melhor solução no combate ao aborto. Em Portugal, por exemplo, após a descriminalização do aborto até a 10 semana da gravidez, os números de abortos diminuíram, e, hoje em dia, as interrupções da gravidez são cada vez menos constantes. A eficácia da lei no cenário português, portanto, foi notória

Artigo 142.º Interrupção da gravidez não punível

1 – Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando: […] e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez. 

Pensamos que a questão da interrupção induzida da gravidez não se traduz apenas em uma análise de gênero e da autonomia da mulher sobre o seu próprio corpo. A tutela do feto desde o momento de a sua concepção é algo que transcende qualquer aspecto religioso ou moral. A vida como bem jurídico com dignidade penal deve ser analisada em seu aspecto amplo, sem restrições indevidas.

Por fim, conforme dito, pode-se discutir a eficácia da incriminação, mas jamais associar o aborto a uma questão, única e exclusiva, de gênero, bem como a um suposto direito da mulher de interromper a gravidez a qualquer momento e sob qualquer pretexto. Deve-se preservar a vida em sentido amplo, e isso inclui a vida intrauterina. A gravidez não é algo que só diz respeito a mulher, mas também a família e a sociedade.

Sendo assim, na próxima coluna, tentaremos identificar a partir de um juízo de proporcionalidade a partir de que momento e em que situações a descriminalização do aborto se faz necessária e é legítima.


REFERÊNCIAS

GOULART, Mariana; Fernanda Martins. Feminismo, direito e aborto: articulações possíveis e necessárias para a emancipação de gênero. Revista Brasileira de Ciências Criminais. a 24, n° 123 (set. 2016) p. 233-258.


Mais textos sobre descriminalização de condutas e descriminalização do aborto aqui.

Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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