Descumprir as medidas impostas pelas autoridades públicas em razão do COVID-19 configura crime?
Olá amigos, espero que estejam bem.
Esta semana resolvi trazer um tema recente que tem gerado profundos debates entre estudantes e profissionais do direito: desrespeitar a quarenta imposta pelo Estado configura crime?
Como se sabe, em meados de janeiro a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a infecção humana pelo novo coronavírus (COVID-19) como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), com risco potencial de a doença infecciosa atingir a população de forma ampla, declarando-a uma pandemia.
Inicialmente, cumpre esclarecer que foi editada a Lei 13.979/20, que dispõe sobre as medidas que podem ser adotadas pelo poder público, diante da situação de emergência na saúde pública.
A Lei prevê a adoção de algumas medidas, a saber:
1) isolamento, separação de pessoas ou coisas contaminadas;
2) quarentena, restrição de atividade ou separação de pessoas ou coisas suspeitas de contaminação;
3) realização compulsória, mesmo contra à vontade da pessoa, de exames, testes, coleta de material, vacinação e tratamentos;
4) estudo ou investigação;
5) exumação, manejo e até destruição de cadáveres;
6) restrição temporária de entrada ou saída do país;
7) requisição de coisas ou pessoas; e,
8) autorização temporária para importação de produtos necessários sem registro na Anvisa.
Quanto ao descumprimento das medidas, a mencionada Lei limita-se a dizer que as pessoas que não aceitem se sujeitar, serão responsabilizadas nos termos da legislação já existente.
Nos termos do artigo 3°, parágrafo 7° da Lei supramencionada, as medidas previstas neste poderão ser adotadas pelo Ministério da Saúde, pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde e pelos gestores locais de saúde, independentemente de autorização, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput do artigo 3º.
Contudo, a lei ainda faz outra ressalva, ao dizer que as medidas de isolamento, quarentena e restrição temporária de entrada ou saída do país, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizado
Como se vê, a lei menciona que os indivíduos serão responsabilizados por autoridades determinadas (artigo 3°, parágrafo 7° e 10°), mas não cria nenhuma figura penal nova, ou, ainda, não faz menção a alguma existente.
Trata-se, pois, de norma penal em branco, vez que possui preceitos genéricos, indeterminados, exigindo, para sua complementação, que o operador do direito se socorra a outra norma.
Para regulamentar a Lei n° 13.979/2020, foi editada a Portaria Interministerial 05/2020.
Abaixo reproduziremos o que é essencial:
Art. 2º Na hipótese de serem adotadas pelas autoridades competentes as medidas emergenciais previstas no incisos I, II, III, V, VI e VII do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, as pessoas deverão sujeitar-se ao seu cumprimento voluntário.
Parágrafo único. Para fins do caput, são consideradas autoridades competentes as previstas no § 7º do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020.
Art. 3º O descumprimento das medidas previstas no art. 3ª da Lei nº 13.979, de 2020, acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores.
(…)
Art. 4º O descumprimento das medidas previstas no inciso I e nas alíneas “a”, “b” e “e” do inciso III do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos art. 268 e art. 330 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, se o fato não constituir crime mais grave.
Já o artigo 6º preceitua que as medidas de realização compulsória no inciso III do art. 3º da Lei n° 13.979/2020, serão indicadas mediante ato médico ou por profissional de saúde (caput). Porém, não dependerá de indicação médica ou de profissional de saúde as medidas previstas nas alíneas “c” e “d” do inciso III do art. 3º da Lei n° 13.979/2020 (p. único).
Trata-se de crime de perigo abstrato, somente punível na modalidade dolosa (o agente deve ter conhecimento inequívoco da determinação do Poder Público para que possa incorrer nas penas do artigo 268 do Código Penal).
Pela leitura do artigo 4° da Portaria Interministerial n° 05/2020, fica claro que não será toda conduta, ainda que dolosa, que incorrerá nos crimes previstos no artigo 268 e 330 do CP.
A bem da verdade, somente o descumprimento das medidas de isolamento e determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais ou tratamentos médicos específicos é que poderá ensejar tal responsabilização penal.
A Lei 13.979/2020, embora em seu artigo 3°, parágrafo 4° informe que “As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”, não deixa claro que tal responsabilização seria criminal. Assim, com base no princípio da legalidade e da reserva legal, não se pode querer ampliar o alcance da lei penal incriminadora.
A título de exemplo, se o agente descumprir medida determinação de quarentena, não estaria sujeito às sanções do artigo 268 do Código Penal.
De outra sorte, agente que não cumprir as determinações do poder público competente (obedecendo a regra do artigo 3° parágrafo 7° da Lei n° 13.979/2020) destinadas a impedir o surgimento ou a propagação do coronavírus no Brasil, e relacionadas no inciso I e nas alíneas “a”, “b” e “e” do inciso III do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, tendo conhecimento destas determinações, poderá incorrer nas sanções do artigo 268 do Código Penal, além do 330 do CP, que trazem a seguinte redação.
Infração de medida sanitária preventiva
Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.
Desobediência
Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Clarissa Azevedo bem esclarece o tema:
A título de exemplo, praticará o crime de infração de medida sanitária preventiva o agente que, mesmo após receber determinação para que realize compulsoriamente exame médico, deixar de realizá-lo (artigo 3, III, “a”, da Lei 13.979/20). De igual modo, se o agente isolado por determinação vier a fugir, também praticará o crime previsto no artigo 268 do Código Penal (artigo 3, I, da Lei 13.979/20). Por se tratar de crime de perigo abstrato, a simples probabilidade de contágio causado à sociedade em virtude do descumprimento de determinação do poder público é suficiente para a caracterização do delito, ainda que desse descumprimento não resulte resultado concreto, posto que este perigo já foi considerado pela lei de maneira presumida (presunção absoluta).
Cumprir as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus é responsabilidade social e destina-se a um bem maior de proteger toda a coletividade. Assim, em caso de descumprimento será possível a responsabilização penal (nos casos expressos na Portaria Interministerial n° 05/2020 c/c Lei n° 13.979/2020), administrativa e civil das pessoas que não observarem as determinações do Ministério da Saúde e dos Gestores Locais de Saúde, executadas por profissionais da saúde em todas as esferas: federal, estadual e municipal.
Nos Estados e Municípios em que haja decretos regulamentando o isolamento, entre outros atos, o descumprimento ensejará o crime previsto no artigo 330 do CP.
O Código Penal, em seu artigo 268, prevê o crime de infração de medida sanitária preventiva, que pune a conduta de violar determinação do poder público, que tenha finalidade de evitar entrada ou propagação de doença contagiosa.
Assim, quem se negar a cumprir as medidas adotadas contra o coronavírus pode incorrer neste ato ilícito, podendo ser condenado a uma pena de 1 mês a 1 ano de reclusão além de multa. Caso a recusa seja por funcionário da área da saúde, seja público ou privado, a pena é aumentada em 1/3.
Entrementes, deve-se observar que, embora a Portaria Interministerial tenha feito menção tão somente aos dois tipos penais informados (artigo 268 e 330 do CP), aquele que propaga doença contagiosa poderá incorrer em outros delitos mais graves. É que se o indivíduo souber estar contaminado com moléstia grave e, mesmo assim, praticar ato capaz de produzir o contágio, incorrerá no crime previsto no artigo 131 do Código Penal, cuja pena varia de um a quatro anos de reclusão, além de multa. Poderá, ainda caso exponha a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente, responder pelo crime previsto no artigo 132 do CP, cuja pena é de três meses a um ano.
Necessário, para a configuração do delito, que o agente tenha ciência do descumprimento e que pratique o fato dolosamente.
Vale lembrar que incorre em infração da ordem econômica, independentemente de culpa, a empresa que aumenta arbitrariamente os lucros ( Lei nº 12.529/2011, art. 36);
É o nosso entendimento, salvo melhor juízo.
FONTES AUXILIARES
AZEVEDO, Clarissa. Coronavírus e o crime de infração de medida sanitária preventiva. Disponível aqui. Acesso em: 02.04.2020.
CERA, Denise Cristina Mantovani. No tocante à eficácia da lei processual penal no tempo, qual é o princípio adotado pelo Código Penal Brasileiro? Disponível aqui. Rede de Ensino LFG. Acesso em: 24 jan 2020.
Revista Consultor Jurídico. Portaria para combater coronavírus suscita divergências entre advogados. Edição de 18 de março de 2020. Acesso em 28.03.2020.
Nota Técnica: NTC-CAOP/CEAPol – 12020. Ministério Público do Estado do Maranhão. Disponível aqui.
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