Desiguais na vida, na morte e no triunfo
É fato que há desigualdades tanto em vida quanto em morte daqueles considerados mais humanos que outros. Entretanto, os motivos dessas dissemelhanças não variam entre as pessoas por sua humanidade, mas por seu reconhecimento perante os outros humanos demasiados humanos.
Esse reconhecer é parte de uma formação ideológica que se agarra ao tipo de sociedade formada e considerada ideal, retratando o sucesso individual pelo poder de fama, gloria e riquezas pertencentes a um número ínfimo de pessoas, como a importância vital para o reconhecimento.
Em 1994, na Avenida das Américas, Barra da Tijucas, no Rio de Janeiro, Rosilene de Almeida, de 38 anos, grávida, foi atropelada e arrastada por um veículo.
Seu cadáver ficou estendido em meio a rodovia, aguardando por duas horas ser retirado do local. Nesse meio tempo, carros esmagavam seu corpo na tentativa de irromper o obstáculo e seguir caminho. Nenhuma autoridade, ambulância ou socorro chegou. A empregada doméstica jazia estatelada em meio ao turbilhão de veículos, com seu filho no ventre morto, aguardando uma remissão que tardaria a chegar.
Para identificar a moribunda, devido ao esmagamento de seu corpo pelos carros que passavam, foi necessário a verificação pelas impressões digitais.
Como um cão!
Vinte e dois dias antes, morria Ayrton Senna, e com o acontecimento o grande carnaval da mídia e revistas que vendiam a morte e lucravam com ela.
Milhões de brasileiros choravam o passamento do grande ídolo, mas o que de fato ia embora com o piloto? O que significava para tantos a ponto de ser compreendido como uma perda sem precedentes?
Enquanto a mãe e doméstica carregava em seu ventre mais uma vida severina, seu corpo esmagado nada significava pois não representa a humanidade em nós. O brasileiro quer fazer parte, e, nessa sociedade deseja estar próximo, aos relacionados com o clube vencedor. Nesse interim, Senna representava o sonho da classe social vencedora e as possibilidades, mesmo que mínimas, para as outras classes.
Rosilene, por outra mão, simboliza aquele que não faz falta, a pessoa que é o que é quando não há mais outra oportunidade em ser outra coisa, não uma vencedora, não um epiteto de vitória. Enquanto há o luto, tristeza e choro por um, o outro aguarda estatelado na rodovia, sendo massacrado por motoristas provavelmente fãs das corridas automobilísticas.
Isso significa que as diferenças são gigantes. Enquanto isso, provavelmente as mesmas pessoas que choravam a morte de Senna, espezinhavam pouco tempo depois o corpo morto de uma mulher da mesma forma a qual se livra de um inseto no piso da sala.
Não se discute de nenhuma forma, o mérito do campeão de Fórmula 1, que merece todos os apupos e aplausos que teve e os que ainda venham a surgir, e que isso fique muito bem claro. O que se questiona é como se identifica quem é o humano como nós.
Destarte, entende-se que humanos são aqueles que possuem os mesmos hábitos de consumo e de estilos, mesmo paroquiais ou esperados de vida, que tenham as características que se espera que tenha, com as mesmas preferencias sexuais, religiosas e o mesmo poder de compra.
Aos outros que fazem parte de um estamento que se identifica em suas diferenças, o poder de polícia, o direito penal e a distinção (discriminação) são os artefatos a serem utilizados. Como K. de “O processo” de Kafka, morto como um cão, tratado como um bicho sem direitos.
Humanos que se ser são aqueles que exibem marcas dos objetos que se deseja possuir, numa forma de garantir o sucesso por via da imagem representativa do triunfo, que é o consumo. Dessa forma, a identificação da sociedade e de seus viventes mais abastados como seres morais é a de distinguir os seus semelhantes por compatibilidades.
Assim, a cidadania de fato é apregoada apenas para alguns, que fazem parte de um espetáculo que se chama aceitação. Para “Rosilenes” da vida sobra o pisotear em seu corpo falido em meio aos espectadores que a definem como um cão.
Nesse pensamento, não é justo com Ayrton Senna torna-lo um ideal da identidade nacional, o que seria apenas uma caricatura daquilo que se espera de nossa sociedade, mas que é incompetente no âmbito cívico e humano, diferindo totalmente dos valores do grande campeão.
O que dizer de Dandara, travesti espancada brutalmente e morta em Fortaleza, quando saia para o trabalho, por algozes que se achavam numa situação de “mais humanos” que a vítima.
Arrastada em um carrinho de mão após seu espancamento para os fundos de uma ruela e exterminada impiedosamente por aqueles que se diziam puros, e por essa pureza, deveriam higienizar o ambiente. Dessa forma, o estamento se revela pelas diferenças da maneira ortodoxa imposta em sociedade; aquele que se difere não é nada e pode ser espancado, pisoteado e deixado no limbo.
Como um cão!
Outra situação preencheu as páginas da mídia e o grande carnaval se iniciou como sempre. O ator global, Fabio Assunção, em Pernambuco, foi preso por danos ao patrimônio público, por incitar discussão, desacato e a negar-se a ser conduzido pelo oficial militar ao distrito policial, agindo com violência, foi posto em viatura e levado até o distrito.
Por outro lado, tempos atrás, em 2015, Fábio Silva, 30 anos, foi abordado por policiais militares de Lagoa Dourada, Minas Gerais, por andar em motocicleta sem capacete. Baleado e morto na porta de sua casa, sem possibilidades de defesa, o relato policial sobre o acontecimento é de que além de ter desobedecido à prisão, agiu de forma violenta contra os policiais. Como um cão!
E é aqui que o problema se concentra; como demonstrar que qualquer vida, seja rica ou pobre, miserável ou famosa, deve ser considerada e respeitada como um fim em si mesma, com a importância relativa à sua única consequência: a de viver apenas uma vida.
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