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Os desodorantes aos olhos da Suprema Corte

Os desodorantes aos olhos da Suprema Corte

Sete de fevereiro de 2017. Os ministros que integram a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal se dividiram quando da votação do HC 137290/MG. Os olhos da sociedade acompanharam a apertada votação. Três votos a dois. O caso?

Uma mulher que, em 2011, havia furtado (para quem não possui intimidade com o Código Penal: é crime meramente patrimonial, sem violência ou grave ameaça), das prateleiras de um supermercado, dois desodorantes e cinco embalagens de chicletes. Sabor menta – vale o registro, pois que nunca se sabe o que os tribunais levam ou não em consideração, nesses casos.

Georgina Gonçalves, a acusada do furto, foi abordada pelos seguranças do supermercado tão logo saiu do estabelecimento. Os bens foram, portanto, restituídos.

Possuía a acusada oito registros policiais (por crimes de lesão corporal, ameaça e furto). Nenhum dos fatos anteriormente apurados contava com condenação transitada em julgado.

O STF entendeu por conceder a ordem e reconhecer a atipicidade material da conduta, em razão da incidência do princípio da insignificância. Em outras palavras: o STF deu razão à defesa e reconheceu que tal conduta não é crime.

Um primeiro ponto chama a atenção, nesse caso: para o Supremo Tribunal Federal ter julgado a causa, significa que: a) autoridades policiais entenderam que a conduta era suficientemente merecedora de atenção e investigação; b) membros do Ministério Público entenderam que a conduta era suficientemente merecedora de atenção e de denúncia; c) membros do judiciário entenderam que a conduta era suficientemente merecedora de atenção e julgamento penal; d) que o item b e/ou c se repetiu, necessariamente, em primeiro grau, em segundo grau e no Superior Tribunal de Justiça.

Um segundo ponto: o caso, ao (inacreditavelmente) chegar no STF, ainda dividiu os ministros integrantes da turma julgadora. Dois dos cinco ministros entenderam, portanto, que a conduta era suficientemente merecedora de atenção e de (manutenção da) condenação.

Foi em razão desse caso que decidi pesquisar a relação do Supremo Tribunal Federal com os desodorantes. Incluídos, aqui, os aerossóis, os roll-on, os em versão creme, em versão sticker, com perfume, sem perfume e os antitranspirantes.

Em 27.8.2013, a 2a Turma já havia julgado caso semelhante. No RHC 113773/MG, o STF aplicou o princípio da insignificância em caso também de furto a supermercado.

O acusado, que possuía duas condenações por roubo – com trânsito em julgado -, havia furtado três frascos de desodorante, totalizando em R$ 30. Tais bens foram restituídos, já que o acusado fora detido, assim como Georgina, pelos seguranças do estabelecimento comercial.

Em 14.10.2008, a 1a Turma julgou o HC 94127/RS. No caso, o acusado tentou subtrair dois vidros de shampoo, um isqueiro e quatro desodorantes de um supermercado.

Foi abordado pelo segurança do local e os bens foram restituídos à vítima. O acusado possuía três acusações por furto e uma por roubo, não tendo nenhuma delas transitado em julgado.

E então vem o terceiro ponto merecedor de registro: os desodorantes, de fato, povoam a pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal. E, já que assim é, há que se levantar algumas questões. Duas, mais especificamente, para não abusar do tempo do meu estimado e perfumado leitor.

O STF absolveu os acusados dos três crimes acima mencionados com base no mesmo fundamento: a aplicação do princípio da insignificância ou da bagatela. Tal princípio é consequência lógica do princípio da intervenção mínima, que defende a aplicação fragmentária e subsidiária do direito penal.

Em breves linhas, significa dizer que o direito penal deve ser utilizado para resguardar apenas alguns bens jurídicos de especial relevância e tão somente quando estes não puderem ser resguardados satisfatoriamente por outro meio ou ramo do direito (BUSATO, 2015, p. 55).

O próprio STF acolhe tal entendimento, afirmando expressamente que a aplicação do princípio da insignificância é um vetor interpretativo do tipo penal, decorrente da intervenção mínima.

Assim, embora a conduta ocorrida no caso concreto se amolde perfeitamente à descrição típica (tipicidade formal), não haverá crime quando a lesão ao bem jurídico for ínfima (inexistência de tipicidade material).

Se a doutrina e o STF assim (expressamente) reconhecem, há uma primeira questão a ser enfrentada: como se pode condicionar a existência ou a inexistência de um crime à presença (ou não) de reincidência ou antecedentes criminais do autor?

Sim, porque em todos os casos aqui narrados o STF afirmou que, “embora o entendimento deste Tribunal seja em rejeitar a aplicação do princípio da insignificância quando o agente é reincidente, o caso é peculiar e excepcional, admitindo-a.”

Parece óbvio que se se está a analisar a insignificância da lesão ao bem jurídico protegido para decidir se o crime existe ou não, pouco importa se perpetrado por um reincidente ou por um primário.

Há, mantido o entendimento atual dos tribunais, a (absurda) possibilidade de dois agentes – um primário e um reincidente – furtarem, juntos, seis desodorantes e o STF declarar que para o réu primário o crime não existe e para o réu reincidente o crime existe(!). Ora: ou o fato (que é o mesmo!) é taxado de crime ou não. Ponto.

Não se ignora, é claro, que o direito penal não pode ficar de mãos atadas diante daquele que realiza diversos pequenos furtos, reiterando insistentemente em condutas de lesão ínfima e ficando, assim, sempre inatingível em razão do referido princípio.

Mas, se se quer considerar o passado criminal do agente, talvez – e aqui é mais uma provocação do que uma afirmação – há que se pensar no princípio da insignificância como vetor interpretativo não da teoria do delito, mas da teoria da pena.

Leia-se: reconhecer a existência do crime e analisar, a depender do caso concreto e das circunstâncias pessoais do autor, se a pena encontra ou não justificativa.

Não há tempo e espaço hábil para analisar a fundo tal proposta. Mas parece, prima facie, menos incongruente e mais aceitável do que o entendimento atual dos tribunais, que carimbam ou não um fato como criminoso a depender ou não das circunstâncias da pessoa julgada (!).

Para finalizar – promessa é dívida -, a segunda questão. Quando do julgamento realizado em fevereiro do corrente ano (HC 137290/MG), o ministro relator, Ricardo Lewandowski, registrou que não reconhecia a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, pois “em época de crise, a tendência é o aumento do índice de furtos, não podendo o Poder Judiciário ser conivente com tais condutas e tendo, portanto, de dar respostas”.

Diante de tal (preocupante) fundamento, o sujeito que furta um desodorante quando o Brasil está em situação economicamente favorável, deve ser absolvido. Se o sujeito, porém, furta um desodorante quando o país está em crise financeira, deve ser condenado.

Veja-se, portanto, que, para decidir se a conduta concreta é ou não é criminosa, o Supremo Tribunal Federal não olha para a conduta. Olha, por vezes, para a pessoa julgada e, por vezes, para a situação econômica do país (!).

Uma vez mais – e de forma inconsciente – o STF relacionou a incidência do princípio da insignificância com as funções da pena (e é por isso, afinal, que estamos falando de desodorantes nessa coluna, que trata de pena!).

O Min. Ricardo Lewandowski considerou (implicitamente) a teoria de prevenção geral positiva – em que se deve reafirmar a norma através da pena – e a teoria de prevenção geral negativa – em que pretende intimidar através da pena, conforme visto em nosso último artigo – para afastar a aplicação do princípio da insignificância.

Assim, diante de todas as inconsistências existentes na relação dos tribunais brasileiros com os desodorantes – e que aqui puderam apenas ser rapidamente apontadas -, sugere-se que, em caso de furto, se opte pela Minancora.

Minha avó jura que tem efeito melhor e mais duradouro do que os desodorantes tradicionais. E, quem sabe, os posicionamentos jurisprudenciais acerca das pomadas sejam menos absurdos.


REFERÊNCIAS

BUSATO, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 55 e ss.

Marion Bach

Advogada (PR) e Professora

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