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Do desvirtuamento e da imprecisão do termo ‘garantia da ordem pública’

Do desvirtuamento e da imprecisão do termo ‘garantia da ordem pública’

Sabe-se que a prisão provisória, leia-se, prisão preventiva, para que possa ser decretada, precisa ter presentes dois elementos, quais sejam, o fumus comissi delicti (indícios de autoria e de materialidade) e o periculum libertatis (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal).

A prisão preventiva será necessária quando houver indícios de autoria e de materialidade do suposto fato delituoso, cumulados a um dos subelementos que fazem parte do periculum in libertatis.

Ou seja, não se faz necessária a presença simultânea dos quatro subelementos que configuram o periculum libertatis, necessitando-se, assim, de apenas um deles para que a prisão preventiva possa ser decretada legitimamente.

Desse modo, o periculum in libertatis só estará configurado quando, no caso concreto, a liberdade do agente que supostamente tenha cometido o delito seja prejudicial ao processo, legitimando desse modo, a decretação da prisão preventiva no escopo de resguardar o regular andamento do feito.

Partindo-se dessa premissa, iremos analisar o instituto da prisão preventiva a partir do subelemento da garantia da ordem pública, trançando um paralelo com a suposta natureza cautelar e a suposta constitucionalidade desse subelemento.

Inicialmente, precisamos entender qual é a real finalidade da prisão processual; a que ela se destina, para, após isso, verificar se o argumento de garantir a ordem pública atende ou não a finalidade intrínseca da prisão processual.

A prisão preventiva, por ter natureza cautelar, e como o próprio nome já sugere, tem por escopo prevenir; resguardar; tutelar o processo. Em outros dizeres, a prisão preventiva está ligada à preservação do processo penal, para que o direito material possa ser aplicado ao final do processo, após o devido processo legal.

Dessa forma, visando à eficácia e a efetividade de uma futura decisão judicial, a prisão preventiva encontra o seu respaldo e a sua legitimidade, pois tem o condão de resguardar o processo, para que o mesmo não se torne infrutífero ao fim que se propõe.

Fica evidenciado, assim, que as medidas cautelares não se destinam a “fazer justiça”, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça por meio do respectivo processo (penal) de conhecimento.

Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada ou ao quadrado. (LOPES JR, 2013, p. 108).

Nota-se que a prisão preventiva não é instrumento idôneo para se “fazer justiça” ou coisa do tipo, pois ela é uma medida cautelar, e, como todo medida cautelar, ela se presta única e exclusivamente para resguardar o processo.

Portanto, ao se analisar a garantia da ordem pública como fundamento para restringir a liberdade de alguém, mediante a decretação de uma custódia cautelar, percebe-se que o referido conceito é vago, possuindo uma amplitude muito grande, o que, na prática dá ensejo a muita coisa.

Em outras palavras, a garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva é um termo impreciso; vago, é um conceito que dá margem a várias interpretações, podendo o julgador, em virtude dessa imprecisão, interpretar a seu bel prazer, de forma extremamente discricionária, ou até mesmo, arbitrária, o que venha a ser uma conduta que ponha em risco à ordem pública.

O Supremo Tribunal Federal já possui entendimento jurisprudencial consolidado no sentido de que a gravidade em abstrato do delito e a afirmação em abstrato de que o suposto autor do fato é perigoso não é fundamentação idônea para que a custódia cautelar seja decretada.

Entendemos que a consolidação dessa jurisprudência é importante, mas temos plena consciência de que é insuficiente para solucionar a questão da imprecisão do conceito de garantia da ordem pública, pois apenas impede a utilização de um argumento (gravidade em abstrato do delito), mas não limita a atuação do magistrado, que pode se valer de outros argumentos, de cunho arbitrários, já que está protegido pelo “escudo” da garantia da ordem pública, em razão da ausência de uma definição precisa do que seria garantia da ordem pública.

É do conhecimento de todos que a mídia e a pressão social são fatores que influenciam, de forma direta, as decisões judiciais. É indiscutível também o fato de que os juízes, por estarem inseridos na sociedade, mesmo agindo com imparcialidade (que é o que se espera), sempre decidem de maneira “parcial”, em razão das influências externas, mesmo que isso ocorra de maneira inconsciente.

Por isso se faz necessária a existência de um conceito preciso do que se entende por garantia da ordem pública, eliminando assim qualquer possibilidade de decretação ilegítima da prisão preventiva, pois estamos tratando de um bem maior, qual seja, a liberdade de um ser humano, que não pode ser cerceada de maneira arbitrária, por meio de uma fundamentação vaga e imprecisa.

Assim, a ausência de um conceito taxativo do que seria garantia da ordem pública afronta o regime democrático e os princípios constitucionais.

Nota-se, ainda, que a abstração no conceito de garantia da ordem pública é algo muito perigoso, pois dá ensejo a decretações de prisões ilegítimas e desnecessárias. Em outros dizeres, a famigerada abstração e imprecisão no que se entende por garantia da ordem pública faz com que haja um desvirtuamento na utilização da prisão preventiva.

Assim, a decretação de uma prisão preventiva, no intuito de garantir a ordem pública, padece de vício de finalidade, pois, nesses casos, a preventiva está sendo utilizado para uma finalidade distinta da que ela se propõe.

Em última instância, a decretação desordenada da custódia cautelar configura uma verdadeira antecipação da pena, pois decreta-se a prisão cautelar no intuito de tentar combater a criminalidade, já que a imprecisão do que seria garantia da ordem pública dá margem a isso, fazendo com que a presunção de inocência e o devido processo legal, em última análise, sejam maculados.

Por fim, percebe-se que, além do conceito de garantia da ordem pública ser amplo e vago, a prisão preventiva não tem o condão de resguardar a sociedade, ou combater a criminalidade, como também não se presta para prender alguém com alto grau de periculosidade, que cometa crimes de forma reiterada, uma vez que ela deveria ser manejada, única e exclusivamente, para resguardar o processo, conferindo-lhe eficácia.

Portanto, conclui-se pela inconstitucionalidade da prisão preventiva como forma de garantir a ordem pública, por não atender a sua finalidade precípua, qual seja, resguardar e tutelar o processo.

É inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarme social, e, por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo. (LOPES JR, 2013, p. 111).


REFERÊNCIAS 

LOPES JR, Aury. Prisões Cautelares. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e Liberdade . 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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