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Deuses Americanos: como ler a guerra às drogas a partir de Neil Gaiman

Deuses Americanos: como ler a guerra às drogas a partir de Neil Gaiman

Este texto não se presta na realidade a convencer, mas sim trazer do mundo literário e ficcional elementos que nos permitam refletir.

As articulações em torno da política de guerra às drogas no Brasil muito tem a contar, talvez por se tratar de uma política altamente seletiva, ou por ter um componente discricionário elevado (já que cabe ao delegado, num primeiro momento, estabelecer se a quantidade de droga apreendida se trata de quantidade para uso próprio ou elemento afirmativo da traficância).

Contemporaneamente somos confrontados com “pacotes” anticrime, com ordens de “meter uma balinha na cabeça”, “ cancelar CPFs”… O que isso tem de política criminal? Em que medida essas declarações ajudam na efetiva materialização da tão aclamada segurança pública?

Confesso que busco auxílio na sociologia crítica, que trata, em sua essência, de buscar explicações para o crime que ultrapassem o paradigma do criminoso para estudar as causas da criminalidade. Não podemos de forma alguma descartar o alto poder selecionante e estigmatizante que a legislação carrega, certo?! Partindo dessa premissa, devemos nos perguntar como escolhemos o que criminalizar.

Inúmeras são as bancadas no Congresso Nacional que se articulam em torno de temas específicos e buscam legislar em favor de suas pautas. E talvez a que mais tem atraído paixões e discursos seja a da segurança pública.

Todos têm uma solução para pacificar o Brasil. Algumas passam pelo armamento do cidadão; outras, que mais nos interessam neste breve texto, querem a matança do inimigo.

E quem é o inimigo? (BRITTO, 2019). O inimigo da nações periféricas contemporâneas é o traficante. Ele é a raiz de todo o mal, responsável por toda a criminalidade, e deve morrer.

Para combater esse inimigo atroz e impiedoso, a solução é só uma: a polícia deve subir os morros e matar. Mostrar quem tem a força. Essa é a “política pública de segurança” que irá nos trazer a paz. E, assim, apoiamos aqueles que nos vociferam legislar para isso.

E qual o problema?

O problema é que essa “política pública” vem matando mais e mais. Mas o sossego não vem: os policiais estão morrendo, os cidadãos também; o tráfico continua e os discursos só fazem recrudescer.

E o que Neil Gaiman tem a ver com isso?

Deuses americanos

Neil Gaiman, em seu livro DEUSES AMERICANOS, nos traz um diálogo esclarecedor sobre a guerra. Não se trata da mesma guerra sobre a qual nos debruçamos, mas esclarece muito como se desenvolve uma política de guerra e nos permite refletir sobre a nossa guerra.

Transcrevo aqui, brevemente, e me permito imaginar Deus conversando com um policial e um traficante em um momento suspenso, um momento qualquer, antes de uma operação policial qualquer, em uma favela qualquer. Convido que façam o mesmo:

Essa batalha que vocês vieram lutar, nenhum de vocês pode ganhar ou perder. A vitória e a derrota são irrelevantes para ele, para eles dois. O que importa é que uma quantidade suficiente de vocês morra. A cada um de vocês que cai em batalha, ele ganha mais poder. Cada um de vocês que morre só o alimenta. Entendem? (GAIMAN, 2016, p. 509)

Quem ganha mais poder?

O discurso da guerra, o discurso do ódio. Aqueles que os estimulam e ao mesmo se alimentam deles e que só fazem se fartar com o sangue derramado.

Afinal, o que poderia trazer mais poder que um campo de batalha coberto de deuses mortos? O jogo dos dois se chamava ‘Lutem um contra o outro’. (GAIMAN, 2016, p. 509)

E qual o resultado dessa reflexão?

Essa “política pública” é ineficaz. Não nos traz paz e não extermina a violência. Ninguém ganha nessa guerra. Perdemos todos.

Não será esta a hora de desenvolvermos uma verdadeira política pública que nos traga paz e não luto, nos traga felicidade e não lágrimas? Será que precisamos de mais sangue no campo de batalha?

Existe um sistema que se retroalimenta dessa guerra, e, coincidentemente ou não, seus atores principais não participam dessa guerra. Eles estão lá, em suspenso, sorvendo do sangue, das lágrimas, do desespero. Eles os fortalecem, são seu combustível, são mantenedores da velocidade com que a engrenagem se move.

Chegou a hora dessa engrenagem ser destruída. Creio que chegou o momento de pensarmos políticas públicas na área da segurança, que um modo mais eficiente, que seja autossustentável, que se mantenha no tempo, que deixe de alimentar essa engrenagem que sempre nos pede mais sangue.

Não será uma tarefa fácil, mas é necessário. Necessário que passemos pela educação, pelo saneamento, pela saúde. Necessário que passemos pela Criminologia e pela Sociologia, e que estas nos levem ao Direito, sempre.

Enfim, Deuses Americanos fala de uma guerra que não é a nossa, mas bem que poderia ser. E ainda que não seja, é campo fértil para a reflexão da nossa guerra.


REFERÊNCIAS

GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

BRITTO, Myrna. E agora, quem é o inimigo?. In: Canal Ciências Criminais. Disponível aqui. Acesso em: 12/02/2019


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Myrna Alves de Britto

Bacharelanda em Direito. Membro da Comissão de Direito e Literatura do Canal Ciências Criminais.

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