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Diário de um agente penitenciário: Gladiadores do Raio 2, a arena da morte

Por Diorgeres de Assis Victorio

Ora este homem que transgrediu, ele é o que é; e para deixar de ser o que ele é, nós temos que refatorá-lo, reexperienciá-lo; nós temos para isso que abrir a sua fatoração, para conhecer quais são os componentes envolvidos nesta complexa estrutura de personalidade. Sem o que, acontece o que aconteceu com o Chico Picadinho[1]; que era uma estrutura criminosa complexa, fechada e envernizada por fora; porque era um excelente preso; excelente preso com ótimo comportamento viveu quase 10 anos nos presídios; todos os diretores que o conheceram lhe deram asmelhores (sic) notas e lhe fizeram  respeito as melhores referências; ao ponto dos próprios psiquiatras que o examinaram no fim, dizerem: – essa periculosidade está cessada completamente. Ele saiu um ano e pouco depois estava ali a fatoração dele todinha fechada; e, quando ele pôde dar as respostas às solicitações criminógenas, ele respondeu identicamente ao que fizera 10 anos atrás: – matou eesquartejou (sic) uma mulher, identicamente ao que fizera 10 anos antes; por que? Porque ele não tinha mudado nada. Ele era o mesmo. Ele era o mesmo, só que envernizado; sabia todas as regras do presídio direitinho; não infringia nenhuma – comportamento excelente, tudo: mas o homem por dentro era o mesmo.” (PIMENTEL, Manoel Pedro. Visão do Sistema Penitenciário Paulista, à luz da penologia moderna. 1953, p. 1-121-122, grifo nosso)

Era um dia como outro qualquer na cadeia, fiz a contagem e liberei os presos que tinham que ser liberados. Não vi nenhuma anormalidade a princípio, mas quando da segunda liberação, a liberação para os demais presos, percebi que os presos não saíam. Algo de sinistro estava no ar, a experiência já tinha me mostrado isso. Presos esperam a noite toda para o banho de Sol, querem liberdade, lutam para aumentar o período do banho de Sol e agora não querem sair de suas celas? Algo de muito grave ia acontecer. Eis que uma porta de uma cela se abre, estava calor e o preso saiu de blusa. Achei que ele estava armado, e realmente estava.

Desceu as escadas e foi para o meio da quadra. Suas mãos estavam voltadas para dentro do corpo, forçando para que elas segurassem algo que estava dentro das mangas da blusa. Nisso voltou às mãos para fora liberando duas “bicudas” (facas) enormes que saíram pelas mangas. Elas estavam presas por uma “cordinha” que prendia as facas no pulso do mesmo, para que ele pudesse “trocar faca” sem que nas batidas das facas uma na outra ou quando as mesmas entrassem no corpo o preso não a perdesse. Ele sabia essa técnica, era um exímio matador na cadeia, com vários homicídios.

Ele bateu as facas uma na outra, o barulho do metal ecoou no Raio, era o sinal que iria acontecer uma luta. Ele gritou: “- Aí cagueta, vem morrer!” Nisso as portas das celas se abriram, presos saiam. Quem morava na ala superior ficava apoiado no para-peito e aguardava. Um preso saiu da cela já com as “bicudas” (facas improvisadas) na mão. O preso desafiador começou a xingá-lo de “cagueta de Diretor”. Nisso o outro preso também bateu uma “bicuda” (faca) na outra. A população carcerária começou a gritar: “- Vai morrer!” “ – Vai morrer!” “- Vai Morrer!”

Eis que o Raio 2 se transformou em uma verdadeira arena, presos faziam apostas, gritavam todos excitados por aqueles que se digladiavam para deleite da população carcerária. Não era todo dia que eles tinham a oportunidade de ver dois presos bons “trocadores de faca em ação”. O preso que foi desafiado era o preso que “comandava” o Raio 2, ele era o “boieiro” (preso que servia a alimentação aos presos), tinha grande poder de coerção e de intimação.

Começaram a se estudar, ninguém dava estiletada no outro. Outros funcionários viam a luta de facas, não dentro do Raio, mas pelo vidro que permitia a visão dos Raios. Toda a cadeia estava ciente da luta, mas poucos se dirigiram aquele local. O preso desafiado possuía uma quadrilha dentro do pavilhão, cansei de ver o mesmo andando escoltado por outros presos armados. Como dizem na cadeia “segurança é mato” (usam a palavra “mato” sempre que querem se referir a uma grande quantidade de coisas).

Começaram a dar estiletadas uns nos outros, e depois de algum tempo, o preso desafiante recebeu algumas estiletadas no seu corpo, umas três. Pensei comigo “ele já era, desafiou e morreu”. Não iria sobreviver a três estiletadas, porque as facas da cadeia eram grandes e largas, quando entram no corpo de um preso “abrem uma avenida”; ele não iria suportar. Mas as facadas não afetaram esse preso eu não conseguia entender. Nisso o preso que foi desafiado estranhou o fato do preso tomar estiletadas e não senti-las, e deu uma “vacilada” e foi alvejado por algumas estiletadas, e ele se curvou. Ele sentiu o rasgar da carne, o estrago tinha sido grande. Os presos de sua quadrilha, mais que rapidamente, entraram no meio armados e salvaram o preso que tinha sido furado.

Outros presos foram para cima do desafiador e ele saiu e foi até o final da ala superior, ficando encostado na parede e assim protegeu suas costas. Se permanece no meio do pátio o “bolinho podre” (grupo de presos covardes) iam esfaqueá-lo pelas costas, na maior “crocodilagem” (covardia). Então ali, onde ele estava agora, pode proteger suas costas, e assim só permitia que viesse um preso de cada vez “trocar faca” com ele. Vinha um preso, tentava às vezes matá-lo, acertava-o e ele não era afetado pelas facadas, mas ele acertava o preso, e assim continuou. Uns cinco presos foram furados, um de cada vez, porque o local só permitia que viesse um preso por vez. Com muito sacrifício os presos entenderam que não tinha jeito de matá-lo e foi permitido que ele saísse daquele local.

Nesse espaço de tempo, o preso que tinha sido desafiado por ele, já tinha sido levado ao hospital. O desafiante veio até mim, eu lhe pedi as facas e ele me entregou, estava toda suja de sangue, eu não possuía uma luva, nem nada próprio para apanhar as facas. Arrumei um pedaço de papel, era a única coisa que eu tinha ali para pegar as facas. Era uma época muito complicada na cadeia, a “epidemia” de AIDS na cadeia era grande, eu tinha muito medo de pegar AIDS na cadeia com essas facas que os presos me entregavam quando das lutas, mas eu tinha que pegar as facas, ele não podia sair do Raio portando faca.

Peguei a faca e pus em um lugar onde outros presos não conseguiam acessar. Pedi para o funcionário “gaioleiro” (que trabalha no setor de gaiola) nos liberar para sairmos. Quando saímos no corredor eu dei um “pano” nele. Vi que ele tinha algo debaixo da blusa e pedi para ele tirar. Ele começou a tirar um tipo de um colete que ele fez. Estava explicado o porquê ele teria tomado tantas facadas e isso não teria o afetado. O mesmo fez um colete feito com tábuas de caixas de alimentos que tinham lá no Setor de Cozinha. Esse colete foi muito eficiente na luta, porque se ele não tivesse usando o mesmo, ele já teria sido morto pelo preso que ele desafiara, pois o mesmo era um exímio trocador de faca e conhecido como matador na cadeia. Eu o levei até o Setor Penal e lá o deixei, voltei mais que rapidamente ao Raio 2, o Raio ainda estava bem agitado, como dizem, estava abaixando o “mil grau”.

Foi determinado que mais que rapidamente o preso desafiador fosse transferido, temíamos que se ele ficasse na cadeia os presos da quadrilha do preso que fora desafiado “virassem” (fizessem uma rebelião) a cadeia para matar esse preso. Só que nesse caso iam ter que pegar funcionários de refém para chegar até onde ele estava, sem contar que iam aproveitar para matar outros presos. Seria uma carnificina na cadeia. Sendo assim, o transferimos para o “Campo de concentração[2]”. Posteriormente o preso esfaqueado retornara do hospital, escapara por pouco.

A cadeia retornara a sua “normalidade”.

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[1] Um policial entrou no banheiro e, aterrorizado, logo saiu. Acabara de ver o corpo esquartejado de uma mulher, “faltando lascas como se se tratasse de peças de açougue”. Após uma bela noite de “orgia” no apartamento da rua Aurora, no centro de cidade de São Paulo, Francisco da Rocha Costa, amarrou as mãos da vítima e a estrangulou com um cinto. Para se livrar do corpo, decidiu então retalhar a mulher com uma faca e uma navalha. O diário detalhou as cenas do crime. “Os pedaços e carne, depois de lavados foram acondicionados em uma mala de viajem. (…) Todos os membros ficaram separados do corpo, o mesmo ocorrendo com a cabeça. O próprio tronco também foi cortado em pedaços. Disponível aqui. Acesso em 01 de agosto de 2015.

[2] No primeiro Estatuto do PCC, em seu artigo 11 e 14 é empregado Campo de Concentração para se referir a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, local esse precursor do Regime Disciplinar Diferenciado.

_Colunistas-Diorgeres

Pintura do post – “Pollice Verso”, de  Jean-LéonGérôme (1872)

Diorgeres de Assis Victorio

Agente Penitenciário. Aluno do Curso Intensivo válido para o Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Penitenciarista. Pesquisador

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