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Diário de um agente penitenciário: “Justiça Divina”

Por Diorgeres de Assis Victorio

A primeira fase da reclusão, em que a lei o obriga ao isolamento, é infernal. Homens casados, amancebados, ou com liberdade de comércio carnal, quando sujeitos, de um dia para outro, a uma abstinência forçada, na maioria das vezes, rebelam-se, revoltam-se espiritualmente, e podem tornar-se até perigosos, porque são sujeitos a impulsões súbitas, a descontroles instantâneos. A natureza é impiedosa. Não tem compaixão do recluso. Acumula, no seu organismo, secreções reprodutoras, hormônios excitantes, que levados ao sangue, transformam o homem numa espécie de jaguar engaiolado. O cio é peor (sic) do que a fome, porque esta defende o individuo, enquanto o outro é o grito da espécie, protestando pelo seu direito de ser vida e amarfanha a alma como uma tenaz de fogo. (TORRES, Dionísio Gonzalez. PARANHOS Ulisses. O problema sexual nas prisões. Revista Penal e Penitenciária. São Paulo: 1940, p. 304-305) (g.n.)

Era uma segunda-feira na cadeia. Nós agentes não gostávamos muito de trabalhar nas segundas-feiras porque é um dia muito agitado. Sempre há problemas para serem solucionados, como a não entrada de visitas, visitas presas por tráfico de drogas, dentre outras diversas coisas. Muitos presos pedem para conversarem com os diretores da Unidade Prisional, para buscarem informações sobre os fatos ocorridos durante a visitação. Uns para saberem informações sobre a prisão de sua “esposa”, outros para incluírem “amásias” em seu rol de visitantes, tendo em vista que uma visitante de um preso “amigo” seu “lhe arrumou uma companheira”. Prostituição na cadeia sempre existiu e sempre existirá.

Lá estava eu escalado no Raio I, Raio dos presos que estão com a pena privativa de liberdade para “vencer”, estupradores, “garotos da cadeia” (homossexuais), presos que trabalhavam na faxina da Administração, no Setor de cozinha, dentre outros. Posso contar nos dedos da mão os dias que tive a oportunidade de trabalhar no Raio I. Eu não gostava de trabalhar muito naquele local, estava acostumado ao fundão da cadeia, já tinha me acostumado a ver mortes e muitos duelos entre os presos e estava acostumado a andar próximos de presos armados. Eu gostava de trabalhar no “barril de pólvora” (sem sombra de dúvidas eu já tinha sofrido os efeitos da prisionização e não tinha reparado nisso). Me sentia como um preso morador do Raio I (me sentia no Seguro) e isso mexia com meu “orgulho” de agente penitenciário, infelizmente essa é a realidade.

Nós que trabalhávamos no fundão da cadeia e que éramos zeladores de Raio éramos pessoas que tínhamos muito controle emocional de situações de “stress extremo”. Eu não entendia porque eu estava trabalhando no Raio dos Seguros. Era estranho o tratamento desses presos comigo. Eles sabiam que eu trabalhava no “fundão” e que era zelador do Raio II, muitos nem se aproximavam de mim. Eu já tinha feito a minha fama na cadeia de agente “zica” (severo). Quem vinha conversar e pedir algo para mim eram os presos homossexuais, “todas” muito “curiosas” da minha presença ali. Perguntavam sobre os presos lá do Raio II onde eu era zelador. Eu sabia que esses presos eram “maridos delas na cadeia” e que as mulheres dos presos não sabiam que nos dia de semana, eles tinham outras “mulheres” na cadeia. Na antiga Casa de Detenção de São Paulo existiam “travecos” que geravam mortes, porque os presos os disputavam entre eles, para ver quem será o marido delas na cadeia. Uns chegavam até a comprar o “traveco” e muitos se casaram na cadeia. Vi alguns que eram bem “femininos”, falavam fino, eram “siliconadas”, usavam cabelos longos, maquiagens e etc..

O dia no Raio “andava em marcha lenta”, as horas não passavam e a monotonia me “matava”. Eu conseguia perceber o grau de criminalidade que aqueles moradores daquele Raio apresentavam, isso era nítido, era ínfimo, mas a “caguetagem” “corria” direto, não era à toa que os presos do fundão diziam que era um “Raio sem futuro” e sempre diziam que se a “cadeia virar” (tiver uma rebelião) eles iam descer ao Raio I e “matar àqueles sem futuro”.

Nisso o meu “sexto sentido” de “guarda” disparou. Havia algo de anormal no Raio, eu sentia isso no ar. Comecei a ver muitas movimentações dos “irmãos” (evangélicos) da cadeia. Eles estavam muito agitados. O interessante é que esse grupo de presos vive muito isolado, eles não se misturam com a massa carcerária, são extremamente seletivos em seu convívio, usavam roupas sociais como também usam os evangélicos na “rua”. Andavam afoitos de um lado para o outro do Raio e sempre com a bíblia embaixo do braço.

Até aquele momento ninguém tinha vindo até mim “caguetar” o que estava acontecendo, eu estranhava isso, porque a população carcerária via de regra não gosta muito deles não, porque muito deles são criminosos que praticaram estupros e estão presos por esse motivo e os presos dizem que: “Aí na cadeia viram irmãos para não sofrerem mais estupros, extorsões e apanharem. Isso não é coisa de sujeito homem na cadeia, se esconder atrás de bíblia”. O ódio a essas pessoas sempre existiu e sempre existirá em uma cadeia, estarão estigmatizados por todas suas vidas. Sempre sofreram muito na cadeia e “cadeia é um lugar onde o filho chora e a mãe não ouve”.

Eu já começava a entender porque eu estava ali naquele dia trabalhando, algo estava para acontecer naquele Raio. Os “irmãos” começaram a subir a escada, eram muitos (o Raio I era o Raio que mais possuía presos que “resolveram” serem irmãos, eram mais de 20 no total). Comecei a escutar discussões, mas pensei comigo que discussões são coisas muito normais na cadeia, pois todos ali sofrem com as mazelas do cárcere, mas de repente comecei a escutar uns barulhos estranhos, parecia que alguém estava sendo agredido, e de discussão passou a ser gritarias. Eis que mais uma vez escuto o conhecido brado da cadeia: “Vai morrer!”.

Levantei da cadeira e subi a escada correndo para verificar o que estava acontecendo, eis que um preso passa por mim correndo, muito assustado. Desci a escada atrás dele e dei um “pano” (revistei) nele. Ele estava desarmado, mas com a boca e olhos machucados e alguns arranhões pelo corpo. Ele estava muito assustado com o linchamento. Eu sabia que ali ninguém iria matá-lo, afinal de contas, estávamos no Raio I e nunca tinha ocorrido um caso de homicídio naquele Raio. Eu o levei à enfermaria e o questionei sobre o que tinha ocorrido. Ele como um “bom morador” do Raio I não fez por menos e entregou todo mundo, dizendo que tinha sido agredido pelos irmãos, que em uma covardia o agrediram, quase o “linchando” até a morte. Perguntei se ele também não era “irmão”, e disse que era sim e que não é mais, porque não quer participar mais da igreja deles, porque não podem agredi-lo assim. Perguntei se o mesmo sabia do motivo das agressões e ele me disse que estava sendo acusado por eles de no dia de visita, ter “mexido” com uma criança durante a visitação, mas que isso era mentira, que ele é um filho de Deus e que não faz essas coisas.

Não pude resistir e perguntei ao mesmo por qual crime ele estava preso, e ele respondeu: “Artigo 213, mestre”. O mesmo não teve condições de voltar ao Raio I. Foi ainda perguntado se ele não queria procurar uma “gaiada” (cela, local para morar) no Raio II e no Raio III e nos respondeu que não tinha condições de habitar nenhum Raio daquela Unidade Prisional e solicitou ir para o “seguro” dizendo que iria para lá, mas que era inocente e que não mexeu com ninguém. Já nos deixando claro que o mais rápido possível queria ser transferido da cadeia porque temia que invadissem o seguro e o matassem como via de regra sempre acontece nos casos de rebeliões. Voltei ao pavilhão e fui conversar com os “irmãos” (eu queria saber dessa história). Um preso me disse muito revoltado, rodeados por muitos outros presos “irmãos”:

“Mestre esse preso chegou da rua marcado pelo pecado do sexo, nos pediu para fazer parte da nossa igreja. Explicamos para ele que na nossa igreja temos regras rígidas, como por exemplo, não assistimos televisão, temos os horários fixos para rezar, não fumamos e não admitimos que fumem dentro de nossos “templos” (tratam a cela como templos, como igrejas). Ele nos disse que iria seguir tudo certinho, nós sabíamos do qual crime ele tinha praticado na rua, mas ele disse que tinha pedido perdão a Deus e estava muito arrependido de tudo e que nunca mais iria praticar qualquer outro crime. Nos disse que queria ser pastor e seguir a religião fervorosamente. Nós demos essa oportunidade a ele. Mas ontem mestre, ele mexeu com uma criança que é filha de um outro “irmão”. Falamos para ele sair da igreja que a gente não o queria mais junto a nós e ele disse que não fez nada e que aquilo era um absurdo o que estavam fazendo, acusando-o de uma coisa que ele não fez, mas a filha do irmão não ia mentir, pois isso é um fato muito grave, e nós perguntamos ao irmão, pai dessa criança, e ele nos disse que tinha acontecido”.

Aí eu perguntei a eles se eles não eram irmãos e responderam que sim. E indaguei “como que irmãos assim batiam em outro irmão”, que eu estranhava isso porque não era isso que eu entendia sobre a religião deles, que inclusive achava que aquilo era um grande pecado, porque Deus tá vendo tudo e viu o que eles fizeram com um filho dele. Mais que rapidamente um preso fez uso da palavra: “Mestre, Deus não viu não!”. E eu disse que ele viu sim que ele vê tudo, que é onipresente.

Eis que ele me disse com todas as letras: “Mestre quando é assim a gente pede para Deus virar de costas, para ele não ver o que a gente vai fazer, e aí a gente bateu muito naquele sem-vergonha”. Quando ele me disse isso eu pensei, depois dessa não pergunto e não falo mais nada, dei-me por satisfeito. Aprendi que até nas igrejas das cadeias existiam punições e regras de conduta criadas por eles.

É, cadeia é realmente um lugar de fazer “loucos”.

_Colunistas-Diorgeres

Diorgeres de Assis Victorio

Agente Penitenciário. Aluno do Curso Intensivo válido para o Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Penitenciarista. Pesquisador

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