Diário de um agente penitenciário: morte no Raio III
Por Diorgeres de Assis Victorio
“Caiu no chão, agonizou um pouco e morreu. O corpo permanecia no meio da roda das mães-de-santo, os atabaques não pararam um momento sequer, só a dança parou. Foi nego Zulu o primeiro a chegar, os atabaques pararam e ao ver o corpo disse: – Que pena, eu queria este cara. – Desculpa Nego Zulu, mas fica aqui um presente do PCC para você. – Você é bom no estilete hein Zoião? Depois que saiu da carceragem do 222º DP parece que andou praticando. – O que mais aprende na Casa de Detenção é usar o estilete, de qualquer forma agradeço a acolhida que vocês estão me dando desde o resgate, aqui pelo menos posso fazer meus trabalhos com mais tranqüilidade, posso continuar com o trabalho? – À vontade, gente do PCC aqui é tudo irmão. Zoião, um dos homens de Russo, justamente aquele resgatado no 222º DP, voltou-se para as mães-de-santo e fez um sinal, os atabaques voltaram a tocar e a dança recomeçou. Zoião voltou para a cadeira e colheu numa taça o sangue que escorria do corpo de Dedo, levantou-se e à vista de todos tomou a bebida. As mães-de-santo gritaram mais alto e rodopiaram na frente de Zoião, quando uma chegava próximo ele colhia um pouco de sangue e dava-lhe para beber, o ritmo acelerava-se.” (CHRISTINO, 2003, p. 341)
Parecia um dia normal na cadeia (para os que não conhecem o sistema nunca as coisas na verdade são “normais” naquele lugar) para nós que estávamos acostumados com aquela rotina de fazer loucos. Cheguei à Portaria, bati o cartão de ponto, desejei um bom descanso aos guardas da noite que estavam saindo e fui adentrando a cadeia. Ao chegar ao Setor Penal me advertiram dizendo para eu ficar esperto no Raio. Era sempre assim, na verdade eles nunca diziam o que estava para acontecer ou qual era o “buxixo”, só mandava a gente ficar esperto e nada mais. Acho que temiam que a gente com medo não quisesse assumir o posto no Raio. Não há outra explicação.
Peguei os chavões, cliques e pranchetas, verifiquei a população carcerária do Raio II que constava naquele setor para depois verificar as informações no Raio, para ver se as mesmas batiam. Subi pensando. Bom, me disseram para eu ficar esperto lá no Raio, mas eu estou trancado no Raio, sei que se der algum buxixo os funcionários descem correndo e trancam tudo e nós zeladores ficamos é trancados no Raio. Nesse caso, o que eu faço? Saio voando do Raio por cima do muro? É, eu só pedia proteção a Deus e que fosse feita a vontade dele. Subi ao Raio II sozinho e pensava: será que hoje vou trabalhar sozinho de novo porque ninguém vai querer subir por causa desse buxixo?
Na verdade em situações assim eu preferia estar sozinho, não queria ver um amigo ficando de refém ou tomando uma facada e eu ter conseguido escapar. Me conformei com a situação. Olhei para a gaiola II para ver quem estava escalado ali, pois eu temia que fosse algum funcionário tipo meio “desligado” e esse fato gerasse mais problemas em virtude do buxixo. Dei um salve no “funça” (funcionário) do Raio III e vi que o zelador não estava lá, ele tinha faltado e colocaram dois outros no local dele. Perguntei a eles se comentaram algo para eles sobre um buxixo e eles me disseram que não e ficaram apavorados, falaram um monte de palavrões e disseram que tinha tanta gente para ficar lá, porque tinham mandado eles e etc..
Eu também não gostei do que fizeram, porque você ficar de “chapéu atolado” (sem saber o que está acontecendo) na cadeia é fogo mesmo. Me senti na obrigação de ajudá-los, porque via de regra quando os presos percebem que o zelador não está trabalhando naquele dia, o “tratamento” com quem o está substituindo é bem diferente. Se é que me fiz por entender. Pedi uma rendição para tomar café da manhã e solicitei um funcionário para me ajudar porque eles tinham mandado dois funcionários lá que não estavam acostumados a trabalhar no Raio III.
Fui atendido. Avisei esse funcionário que eu ia deixar ele um pouco sozinho ali no Raio, porque precisa dar uma ajudada no Raio III e que ele não se preocupasse com o Raio II, porque eu já tinha liberado os presos para o banho de Sol e já tinha conversado com um “língua preta” (alcagueta) do Raio e ele me disse que o problema era no Raio III. Esse meu “passarinho” (alcagueta) “cantava” bem, não errava uma.
Fui ao Raio III ver como andavam as coisas lá. Ao chegar lá verifiquei que estava um ar muito sinistro. No Raio III existiam muitos grandes traficantes, homicidas e assaltantes de bancos, mas todos eles eram da Capital (de SP) e os do Raio II eram os “pés vermelhos” (pés vermelhos por causa da terra vermelha do interior: era uma maneira deles se referirem aos presos que eram oriundos do interior de SP).
Eis que só escuto um barulho vindo do lado esquerdo. Assustei-me e olhei mais que rapidamente. Um preso estava rolando escada abaixo, tinha sido jogado escada abaixo e caiu no térreo. Fui lá ver quem era, os presos não se aproximavam, sabiam que eu era zelador do Raio II. O preso não respirava, aparentemente estava morto. Estava com a face toda desconfigurada, eu não conseguia reconhecê-lo, seu corpo estava com muitas perfurações e não sangrava. Ele tinha sido morto no mínimo na noite anterior. Depois na enfermaria contamos as perfurações num total de 15 no peito e nas costas e 3 em cada perna. Será alguma relação com a décima quinta letra do alfabeto a letra “P” e a terceira letra do alfabeto a letra “C”, “PCC”? Com certeza sim!
Um preso começa a descer a escada com duas “bicudas” (facas) na mão. Lá vinha um “largato” (lagarto, esquema, laranja) se apresentar. Ele me deu as duas facas e me disse que ele era o matador. Eu perguntei a ele se era ele também que tinha sozinho jogado um preso que tinha quase o dobro de sua estrutura corporal lá de cima da escada. Ele não conseguia falar, somente confirmou com a cabeça.
Nisso outros presos apareceram e me disseram que tinha que “subir o gás dele” (matar) e que o mano tinha se “apresentado” de livre e espontânea vontade. Eu disse aos mesmos que eu “estava tirando cadeia” há mais tempo que muitos presos ali e que eu já tinha entendido tudo o que estava acontecendo.
“Sempre existiu esse indivíduo que segura a morte de alguém e que um dia, devido o caminho sinuoso do destino, ele próprio acabará no bico da faca de uma pessoa que, por sua própria vez, vai pôr um laranja para assumir a morte dele. E, assim, por meio da laranjice, vão se os filhos queridos de muitas mães, deixando apenas lágrimas que rolam no rosto do sofrimento humanitário” (VARELLA, 1999, p. 151).
Sempre lamentei fatos assim, mas “embora os funcionários saibam que aquele não é o verdadeiro autor do crime ou contravenção, pouco podem fazer contra o código de silêncio que rege a vida no Crime” (VARELLA, 1999, pp. 148 e 151). Agradeci que ao menos daquela vez eu não tinha visto aquela carnificina, afinal de contas eu nada poderia fazer.
“Nos acertos de contas entre a malandragem, quando um grupo decide dar cabo de alguém, os funcionários têm ordem para não interferir. Morra aquele que tiver que morrer; paciência, trabalham desarmados: Nessa hora não dá, doutor, é como querer apartar briga de cachorro louco. Um funcionário de trinta e poucos anos faz bico como segurança de um prostíbulo em Diadema, que ele garante ser lugar de respeito e insiste que eu vá visitar, contou que a imagem do primeiro preso que ele viu morrer, há cinco anos, retorna quando menos espera: Chegaram oito com faca e pau no xadrez do tal Alagoas. Ele me viu e começou a gritar: me ajuda, seu Paulo, pelo amor de Deus! A única coisa que eu pude fazer foi pedir para não matarem o rapaz. Não adiantou nada. Tomou mais de vinte golpes. É feio, doutor, um ser humano berrando feito porco apunhalado e o senhor não poder fazer nada. Com o tempo, Paulo presenciou outras mortes semelhantes, mas a impressão da primeira foi inesquecível: Até hoje a expressão de terror daquele rapaz volta na minha mente, num aniversário de família, na cama com a minha mulher ou na frente da TV com as crianças. De minha parte, posso assegurar que a influência do meio está longe de ser desprezível. Apesar de médico, diversas vezes tive vontade de bater em alguém na cadeia, não por terem me faltado ao respeito, fato jamais ocorrido, mas pela revolta diante da perversidade de um preso com outro” (VARELLA, pp. 115-116).
É, infelizmente, “podem botar na conta”: mais um corpo sem vida que tive o desprazer de ver na minha frente.
REFERÊNCIAS
CHRISTINO, Marcio. Por dentro do crime. São Paulo: Escrituras, 2003.
VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.