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Direito à defesa criminal: um direito de todos!

Direito à defesa criminal: um direito de todos!

A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: permanecer sobre o último degrau da escada ao lado do acusado. – Francesco Carnelutti

A violência urbana é sempre campo fértil ao discurso do ódio:

Bandido bom é bandido morto’;

‘Está com pena? Leva ele pra casa’;

Direitos humanos? Só para humanos’;

Ah, se tivesse pena de morte’;

‘Tinha que fuzilar e mandar a conta da bala para a família’;

‘Como pode este advogado defender este assassino?’

Muitas pessoas pensam assim; paradoxalmente, estas mesmas pessoas tomam o outro por um bárbaro e a si próprias por civilizadas; acolhem, sem saber, a teoria do “Direito Penal do Inimigo”, mas numa vertente ainda mais radical que a proposta por seu criador, o jurista alemão Günther Jackobs.

Naturalmente, trata-se de uma visão opaca da realidade jurídico-penal e, por isso, equivocada, mormente porque as críticas, muitas vezes, dirigem-se mais ao próprio Defensor (eis que não compreendem a função deste – indispensável à administração da Justiça, art. 133 da CF) – que ao fato posto à apreciação (infração penal).

De proêmio, ressalta-se que a Defesa é um direito sagrado, está prevista, inclusive, nas Escrituras:

[…] E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? – Gênesis, Capítulo 4, Versículo 9.

Sobre esta passagem bíblica, Sobral Pinto, citado por Paulo Filho, alertava:

Deus, que tudo sabe e tudo pode, antes de proferir a sua sentença contra Caim, que acabava de derramar o sangue de seu irmão, quis ouvi-lo, como narra explicitamente a Sagrada Escritura, dando aos homens, com este exemplo, a indicação irremovível de que o direito de defesa é, entre todos, o mais sagrado e o mais inviolável. (PAULO FILHO, 2015, p. 49).

Também a Constituição Federal (art. 5°, inc. LV) e o Código de Processo Penal (art. 261, p. ex.), bem como a Súmula 523 do STF deixam claro não apenas a importância, mas a imprescindibilidade da defesa para que se tenha um julgamento legítimo, de modo que sem que se proporcione ao acusado uma defesa ampla e suficiente não se pode nem mesmo cogitar de justiça, mas sim de uma vingança institucionalizada praticada pelo próprio Estado contra o cidadão cujos direitos aquele (o Estado) outrora se propôs a respeitar.

O direito à defesa é “conditio sine qua non

De qualquer modo, aqui já se verifica que, seja pela Lei de Deus ou pela lei dos homens, o direito à defesa é “conditio sine qua non” para se infligir uma pena num Estado Democrático de Direito.

Quando o Estado incorporou em si o “jus puniendi” (direito de punir) – reflexo do poder soberano originário das parcelas individuais de liberdade sacrificadas em prol da criação do próprio Estado (origem contratualista) – assumiu conjuntamente o dever de corresponder aos anseios da sociedade que lhe deu forma, em especial a incumbência de não abusar e/ou violentar direitos.

Justamente nesta perspectiva de limitar os abusos estatais é que surgiu a lei, a qual retirou dos déspotas o poder arbitrário e ilimitado (pois quem tem o poder tem também uma inclinação para abusar dele, já dizia Montesquieu), e estabeleceu direitos e fórmulas a serem observadas.

O advogado, principalmente na seara criminal, é a última trincheira contra o abuso punitivo estatal, e tem o dever de proteger a lei e as garantias constitucionais. A luta da advocacia criminal não é contra a sociedade, mas contra o Estado quando este se excede em seu poder punitivo.

O direito penal é o tentáculo mais mortífero do Estado, pois sacrifica um dos bens mais preciosos: a liberdade. O advogado, quando milita na esfera criminal (seja em Júri, seja em procedimentos de competência do Juiz Singular), defende não apenas a liberdade daquele que está sendo julgado, mas sim o direito dele – e de qualquer membro da sociedade – de ser julgado em estrita observância à lei e, logicamente, aos direitos que esta assegura a todos os acusados. Afinal, seria justo aplicar a lei, com rigor, naquilo que prejudica o acusado (imposição de uma pena) e sonegar, esse mesmo rigor, naquilo que o beneficia (respeito às garantias legais)?

A lei não pode ser cindida a ponto de, em parte, ser aplicada e, na outra, ser descumprida. Não interessa à sociedade o descumprimento da lei; não interessa ao povo a condenação de um inocente; não interessa, por óbvio, que o culpado saia impune; mas também não interessa que o criminoso seja punido de forma exagerada. Interessa ao povo, apenas, que seja feita Justiça, a qual, no sentido aristotélico, implica em “dar a cada um o que é seu”, ou seja, eventual pena deve ser aplicada, se for o caso, em sua justa medida, em exata proporção com o mal (crime) praticado (proposição do iluminismo penal feita pelo sempre lembrado Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana).

O defensor zela para que isto aconteça, e tem a tarefa de ser a vez e a voz daquele que não possui vez nem voz; de batalhar, até o último minuto, para preservar os direitos do homem, em especial a liberdade, sem a qual pouco (ou nada) resta a ser resguardado, e que apenas poderá ser suprimida quando e se demonstrado o crime.

Jean-Jacques Rousseau há tempos preconizava que

renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, até mesmo a seus deveres. Não existe nenhuma compensação para quem renuncia a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza do homem e é eliminar toda a moralidade de suas ações, assim como eliminar toda a liberdade de sua vontade. (ROUSSEAU, 2012, p. 32).

A liberdade é um bem indisponível, e por isso não pode ser renunciada nem mesmo pelo seu próprio titular. Desde os tempos da intensa agitação decorrente da Revolução Francesa – para ser mais preciso, desde sempre – nunca ninguém sequer cogitou a ideia de abrir mão da sua liberdade (direito humano fundamental, reconhecido e positivado na esfera do Direito Constitucional), se não da parcela mínima necessária e indispensável à existência do próprio Estado, e só!

A advocacia e o direito à defesa

E é nesta toada que ao advogado – profissional devidamente habilitado para tanto – incumbe a defesa intransitiva da liberdade, bem jurídico muitas vezes forjado à luta e sangue nas Constituições dos Estados Democráticos e de Direito, cujo retrocesso alcançado é inadmissível.

A missão primordial do advogado criminalista, portanto, é defender a liberdade, não por acaso que a origem etimológica da palavra advogado é a expressão “ad auxiliaum vocati”, aglutinada em advocati, ou seja, aquele que é invocado, que vem para junto, que é chamado para ajudar. O advogado é órgão auxiliar da Justiça e, como referido nas linhas antecedentes, indispensável à Administração desta (art. 133, da CF).

Dito isto, soa evidente que a atuação do advogado criminalista é de cunho estritamente técnica, e não implica, à evidência, em ser conivente com os fatos imputados ao acusado, fatos que, é bom que se diga, muitas vezes nem se amoldam às figuras penais (ausência pura e simples de tipicidade) ou, mesmo quando penalmente típicos, encontram-se sobre a égide de descriminantes, ou de circunstâncias atenuantes, ou ainda sujeitos às causas de extinção de punibilidade previstas no ordenamento jurídico.

O advogado/defensor, antes de tudo, é um cidadão, tão membro da sociedade como o acusado, a vítima e seus familiares, mas cuja missão consiste em ser, ao lado do acusado – inocente ou criminoso – o brado de seus direitos legais, o fiscal das garantias e direitos que assistem, como citado alhures, não só àquele réu, mas a toda e qualquer pessoa que seja chamada a prestar contas perante a Justiça Criminal.

Direito à defesa: não existe causa indigna de defesa

E, como dizia o saudoso e sempre lembrado Rui Barbosa, quando instado por Evaristo de Moraes, em matéria criminal não existe causa indigna de defesa:

Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta não só apurá-la, no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar, pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente. (BARBOSA, 2012, p. 58).

Toda pessoa que vier a ser acusada de uma infração penal precisa e deve ser defendida, ainda que se trate de réu confesso (de há muito a confissão deixou de ser a “rainha das provas”). Do contrário, eventual pena aplicada não será legítima.

No campo dos dramas humanos para quase tudo há explicação, e o porta-voz disso será o advogado, que levará a justificativa do acusado ao Magistrado ou, se for o caso, ao Conselho de Sentença, a quem caberá deliberar a respeito, sendo que a má reputação do fato objeto da defesa não pode, em hipótese alguma, recair sobre o advogado, pois este evidentemente não se confunde com o acusado, e deve atuar de forma técnica e desprovida de paixões.

A propósito, esta advertência não pode escapar à percepção do próprio causídico, cuja atuação deve ser precavida:

O advogado de defesa não deve se apaixonar. Os adversários de seu cliente não podem se tornar seus adversários. O drama e a glória do defensor estão nesse pisar de lama sem salpicar os sapatos. (PELLEGRINO, 1978, p. 10).

Direito à defesa

Mas o direito à defesa, apesar de inquestionável, possui naturalmente limites, seja de ordem ética e moral, mas notadamente no plano da legalidade da atuação defensiva, limites sem os quais a advocacia criminal perderia a nobreza e honradez que sempre lhe foi conferida e permitiria ao defensor incauto flertar, por vezes, com a própria criminalidade, algo inadmissível e que, se ocorrer, deve igualmente ensejar punição.

É necessário prudência e cautela ao defensor. Em um palavreado simplório, até seria possível concluir com a metáfora:

Pelo cliente, eu vou até a porta do inferno, mas eu não entro!.

Ou seja, também à defesa aplica-se a máxima de que os fins nem sempre justificam os meios, e há barreiras que se apresentam intransponíveis. É necessário manter realçada essa diferença, por vezes tênue, entre o defensor e o acusado, para o bem da advocacia e, igualmente, da sociedade.

No âmbito penal isso é ainda mais relevante, pois não raras vezes a mídia busca destruir não apenas o réu, mas também seu defensor, e assim o faz motivada, quiçá, pelas investidas frequentes de alguns órgãos de persecução penal (afoitos em punir a qualquer custo, verdadeiros “paladinos da Justiça”) que, para tripudiar de vez com o acusado, buscam até mesmo criminalizar sua própria Defesa, tentando – em vão – intimidá-la e fazê-la recuar naquilo que é sua tarefa primordial: defender a liberdade das pessoas.

Infelizmente, como sói acontecer neste país, os meios de comunicação não raras vezes vestem o advogado como um defensor da criminalidade, aviltando a liberdade e dignidade profissional e transmudando o defensor em bandido a tal ponto que, quando se trata de Tribunal do Júri, por exemplo, o estigma é tão forte que precisa ser desconstituído antes mesmo de iniciada a defesa propriamente dita.

Direito à defesa: um direito de todos!

É uma cicatriz que assola a advocacia criminal, mas que isto, em vez de impulsionar ao desânimo e à subserviência do advogado àquela parcela da mídia que não se preocupava com o dever de informar (pois seu escopo é unicamente o de lucrar com a desgraça alheia), sirva sempre de motivação ao defensor.

A justiça – pelo menos a verdadeira Justiça – esta não se vende como jornal em banca de esquina e não se fabrica em linha de produção, pois é aos poucos construída dentro de um processo no qual deve ser assegurado ao acusado o direito pleno e indisponível de impugnar e de exercer o contraditório sobre todas as provas e alegações que pesam contra si, e para isso existe o advogado.

A defesa é um princípio bíblico e constitucional, além de instinto inato de todo ser humano. Princípios são intransigíveis, intransponíveis e, sobretudo, invioláveis. Assim, não pode o advogado jamais se acovardar, devendo ter sempre ciência de que seu papel não é agradar, mas sim o de defender.

Vive-se hoje numa época na qual alguns membros do Judiciário, bem como de instituições de natureza persecutória penal desrespeitam as leis diuturnamente, e no afã de estar sob os holofotes violam direitos e garantias constitucionais do cidadão, tudo para cair nas graças do povo.

Mesmo (e principalmente) diante deste cenário o advogado jamais deve se dobrar a condutas arbitrárias advindas de quem quer que seja. A defesa não é simbólica ou ornamental, é essencial. Aquele que pretende atuar na esfera criminal para bajular juiz ou promotor, para agradar delegado de polícia, para ser “admirado” pela imprensa, para se tornar figura conhecida nas vielas da miséria criminal, esquecendo qual é de fato o seu papel, coopere com a justiça: largue a beca.

Vivemos tempos difíceis, mas é o mais propício à formação de grandes advogados!


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Rui. O dever do advogado. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2012.

PAULO FILHO, Pedro. Grandes advogados, grandes julgamentos (no júri e noutros tribunais). 4. ed. São Paulo: JHMIZUNO, 2015.

PELLEGRINO, Laércio. A defesa em ação. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.


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Ezequiel Fernandes

Advogado criminalista

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