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Direito e Moral em Luigi Ferrajoli

Por Diógenes V. Hassan Ribeiro

Tal como ocorre com a maior parte dos jusfilósofos, também Luigi Ferrajoli defende a completa separação do direito da moral. Disse isso claramente na obra que contém a sua Teoria do Garantismo Penal, Direito e Razão, na versão brasileira, da Editora Revista dos Tribunais, de 2010, assim como na versão espanhola, Derecho y razón – teoría del garantismo penal, de Editorial Trotta, de 1995, ou na original, de 1989, Diritto e ragione – teoria del garantismo penale, de Editori Laterza. Depois enfatizou ainda mais essa concepção em inúmeras outras obras como, por exemplo, em Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo – um debate com Luigi Ferrajolli, da Livraria do Advogado Editora, de 2012, com dois capítulos, o primeiro tendo sido Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista.

No decorrer da sua obra, Ferrajoli constroi várias teses e teorias, classificando-as, pelas quais procura expor a compreensão de separação entre direito e moral. Numa dessas classificações, elabora três teses axiológicas fundadas no utilitarismo jurídico que são abordadas no direito penal. Essas teses são concebidas no delito, no processo e na pena.

Na vertente do delito, em que aborda a legislação, diz que não importa ao direito impor a moral, mesmo que seja uma determinada moral. Deve haver, ademais, ofensa a bens jurídicos alheios, para que a conduta seja tida como de natureza penal, pois não é possível ao Estado impor uma vida moral, já que o objetivo é a tutela da segurança, impedindo que cometam danos uns aos outros.

No que concerne ao processo, o Judiciário não exerce o superego da sociedade[1], como advertiu Ingeborg Maus em 1989. Portanto, para o garantismo, essa axiologia utilitária determina que, na jurisdição, não se trate da moralidade, ou do caráter, ou da personalidade do indivíduo (ver as restrições ao chamado direito penal do autor), mas apenas sobre o fato (direito penal do fato).

Por fim, quanto à pena e sua execução, não deve haver nem conteúdos, nem finalidades morais. O Estado não tem o direito de obrigar os cidadãos a não serem ruins, nem, muito menos, de alterar a sua personalidade (reeducar, ou redimir, ou recuperar, ou ressocializar). A chave é a de que o cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos e o direito de ser internamente ruim e de permanecer aquilo que é.”  Pode parecer até incompreensível, para leigos, que assim deve ser. Aliás, não faz muito se cogitou de esterilizar doentes mentais ou estupradores. Ser contrário a isso, no sentido de entender que o Estado não tem esse direito, não há de significar, jamais, justificar o mal/dano cometido por qualquer indivíduo.

Nesses termos, o Estado não deve se intrometer nas consciências, nem nos pensamentos, a despeito de ser possível saber tudo sobre todos no mundo da internet, até seus cliques virtuais, inclusive onde esteve ou está durante todo o tempo.

O ataque mais feroz e erudito feito por Ferrajoli contra pretensões que procurem conectar o direito à moral foi realizado na última obra acima mencionada, editada em 2012, quando ele critica o “antipositivismo principialista” que tem espaço no chamado neoconstitucionalismo. A crítica apresentada por Ferrajoli é de tal modo forte que ele acrescenta o adjetivo de constituir um retorno às pretensões jusnaturalistas quaisquer esboços de compreensões que afirmem a validade externa do direito na época atual:

A tese de que todo ordenamento jurídico satisfaz, objetivamente, alguma “pretensão de justiça” e algum “mínimo ético” – de maneira que direito e moral estariam conexos, e a justiça, mesmo que em mínima medida, seria um elemento necessário do direito e uma condição de validade das normas jurídicas – significa, em suma, o mesmo que a velha tese jusnaturalista[2].

Superando esse ponto, até porque o espaço não permite dizer muito mais e porque, definitivamente, convém reiterar o que já constou em outras colunas aqui publicadas, não está encerrada essa polêmica entre a separação ou não do direito da moral, convém ir adiante, na obra de Ferrajoli. Em data mais recente, no final de janeiro e início de fevereiro de 2013, o jusfilósofo italiano, em conferência no XIX Congresso di Magistratura Democratica Roma, apresentou nove máximas de deontologia judiciária. Ora, mas deontologia, segundo as fontes indicam, é uma teoria criada por Jeremy Bentham como, muito resumidamente, uma teoria do dever, uma ética normativa. Nesses termos, essas nove máximas seriam deveres morais/éticos da magistratura. Isso não há de significar qualquer contradição, porque uma coisa é dizer que há separação entre direito e moral, outra coisa é enunciar máximas deontológicas da magistratura na aplicação do direito. A respeito disso conviria tratar mais longamente, não aqui neste espaço.

Convém tratar, por enquanto, apenas da quarta máxima, que consiste em “La disponibilità all’ascolto delle opposte ragioni e l’indifferente ricerca del vero”. Em tradução livre seria: a magistratura deve estar disposta a ouvir as razões opostas pela defesa e permanecer indiferente até ser possível emitir a solução final. Isso significa que os juízes, inclusive os integrantes do Ministério Público, devem estar disponíveis a ouvirem todas as diversas razões opostas e exposições que refutam e submetem a hipótese acusatória a uma possível falseabilidade. Ferrajoli busca  na obra A lógica da pesquisa científica, de Karl Popper, de 1933, o princípio da falseabilidade e o apresenta à jurisdição penal. Essa mudança paradigmática na epistemologia supera “a necessidade de comprovar que uma teoria era verdadeira” revelando a noção de “ser possível/necessário refutar, pela experiência, um sistema científico empírico”.  É o princípio da crítica.

Assim, embora direito e moral sejam distintos, há um dever moral da magistratura na aplicação do direito, sendo uma de suas máximas a disponibilidade do magistrado de ouvir todas as possíveis refutações, mantendo-se indiferente. É o primor da imparcialidade, verdadeiro atributo da magistratura.

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[1] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Novos Estudos CEBRAP nº 58/2000, p. 183-202 (trad. do original de 1989 por Martonio Lima e Paulo Albuquerque).

[2] FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista.  “in” Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Alexandre Morais da Rosa ..[et al.](organizadores) Luigi Ferrajoli, Lenio Luiz Streck, André Karam Trindade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 31.

_Colunistas-Diogenes

Diógenes V. Hassan Ribeiro

Professor e Desembargador

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