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Direito penal do autor na aplicação da fiança


Por Ingrid Bays


Nos crimes afiançáveis o valor arbitrado deve ser determinado pela autoridade mediante análise da natureza da infração, das condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, das circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento. É o que preconiza o artigo 326 do Código de Processo Penal.

Procedendo a leitura do Boletim do IBCCRIM deste mês, me deparei com um artigo que não poderia deixar de ser comentado neste Canal. O autor, Marcus José da Silva Cardinelli (2015), traz por escrito as palavras ditas por Delegados de Polícia do Rio de Janeiro sobre a arbitração da fiança. Os relatos, por óbvio, não são novidade alguma para aqueles que labutam na seara criminal. No entanto, quando escritos, lidos e relidos, escancaram uma realidade impossível de ignorar: o fundamentalismo punitivo que está intrínseco nas instituições policiais, acabando por estabelecer critérios morais essencialmente subjetivos de punição (2015, p. 129). Peço vênia, portanto, para reproduzir alguns dos relatos, todos ditos, segundo o referido autor, por Delegados de Polícias da PCERJ:

“a lei não diz que a fiança é negada no caso do preso não ter residência fixa. Mendigos, por exemplo, têm de ficar presos para não ficar turbando a ordem. Deve-se levar em consideração sempre o sofrimento da vítima. Muitos praticantes de crimes afiançáveis não trabalham. Isso faz com que tenham maior dificuldade de pagar esses valores. O critério usado, na justificativa é se o preso vai voltar é delinquir e, assim, se é perigoso. A fiança leva em consideração quem é a pessoa e o que ela é capaz de fazer. Se for só um ladrão de oportunidade, pode arbitrar uma fiança média. Mas se for bandido, o papo é outro. A fiança geralmente fica sem pagar. Geralmente quem comete crime é morador de favela, morador de rua, não tem onde cair morto, não tem emprego, não tem dinheiro”

“O delegado tem um poder imenso! É o delegado que diz quem está preso e quem está solto. É quem tira a liberdade por qualquer crime, perturbação ou desacato. Aplico fiança alta; coloco furto ou roubo como eu quiser; qualquer trombada que seria furto com destreza, eu arrumo um roubo qualificado; prendo por resistência ou desacato; coloco no tráfico em vez de no uso”.

Em um primeiro momento já salta aos olhos a questão da seletividade penal: “geralmente quem comete crime é morador de favela, morador de rua, não tem onde cair morto, não tem emprego, não tem dinheiro”, ou seja, a autoridade policial já atua com um diagnóstico lombrosiano e absolutamente equivocado, pois há muito se percebe que os indivíduos de classes menos favorecidas da sociedade não são quem praticam mais crimes, mas sim os que possuem mais chances de serem criminalizados!

Não bastasse isso, restou claro que essa seleção punitiva é, para alguns Delegados de Polícia, caráter decisivo para a arbitração da fiança, momento no qual se abraça por inteiro o direito penal do autor: ignora-se o fato, a ação típica concreta, a fim de que se puna o acusado pela sua personalidade e atributos tidos como socialmente negativos, enfim, pelo que ele é. Assim, objetiva-se dificultar a sua soltura mediante fiança, para que se faça “justiça” a qualquer custo, o que se verifica absolutamente inconstitucional, nesse ponto de vista.

São situações infelizmente corriqueiras em nosso cotidiano, mas mesmo assim é de ressaltar o quão “arrepiante” se torna a leitura dos relatos acima colacionados. São posturas institucionais e habituais que relativizam as garantias constitucionais dos acusados, resultando exatamente naquilo que Zaffaroni (2001, pp. 26-27)assegura, quando afirma que “o sistema penal é um verdadeiro embuste: pretende dispor de um poder que não possui, ocultando o verdadeiro poder que exerce”.


REFERÊNCIAS

BIZZOTTO, Alexandre. A mão invisível do medo e o pensamento criminal libertário. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

CARDINELLI, Marcus José da Silva. As fianças criminais e as práticas da polícia civil. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 23, n. 278, p.04-05, jan. 2016.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

Ingrid

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