Há Direito Penal do bem jurídico em uma estrutura criminal seletista?
Há Direito Penal do bem jurídico em uma estrutura criminal seletista?
Quando se fala em expansão do Direito Penal modernamente se tem duas linhas de intepretação deste fenômeno. A primeira é a tutela nesta seara de novos atores e novos bens jurídicos. A segunda é a criação de novos tipos penais, autônomos, para fatos que já se enquadravam em outras tipificações, ou seja, a ideia de hipertipificação ou hipercriminalização.
Enquanto a primeira faceta da expansão pode ser de extrema importância – na grande maioria dos casos – para a atualização do Direito Penal às novas realidades, novas relações interpessoais, a segunda já não pode ser vista com olhos tão bons, uma vez que a criação de tipos penais autônomos desnecessários serve apenas para inflar, ainda mais, as nossas legislações.
Tal expansão, inegavelmente, deturpa por diversas vezes o princípio da necessidade da pena, que passa a possuir um caráter criminógeno: este princípio passou a ser relativizado, ou seja, a ser utilizado não mais para restringir a atuação punitiva do Estado por meio do Direito Penal, mas sim para justificar novas incriminações.
Lembremo-nos que nem sempre o Direito se manifestará socialmente através do Direito Penal, que deve ser considerado como última forma (ultima ratio) de intrusão do Estado na vida de seus administrados. Cumpre a ele, por meio do Direito Penal, apenas a proteção dos bens jurídicos mais relevantes à sociedade (princípio da subsidiariedade) e, mesmo diante deles, cabe ao Estado tutelar apenas as condutas mais gravosas a tais interesses (princípio da fragmentariedade).
Portanto, concluímos que tais princípios servem como verdadeiros freios e contrapesos à expansão do Direito Penal, contra a indiscriminada criação de tipos penais e de tutela de todas as condutas ofensivas a bens jurídicos relevantes.
Desta expansão se pode alcançar o que o professor Silva Sánchez definia como um Direito Penal de “3ª velocidade”, caracterizado pela relativização de garantias político-criminais. Na verdade, o que o autor espanhol quis dizer é que a 3ª velocidade do Direito Penal é definida pela criação de um inimigo e a relativização de garantias político-criminais e de dogmática penal e processual.
Esta criação de um inimigo, pensada por Jakobs, deve ser compreendida como a criação pelo Estado da “pintura de um ser” que optou como filosofia de vida o desrespeito pelo Direito por toda a sua passagem terrena, desconsiderando a possibilidade de ressocialização. O que parece ser inicialmente absurdo já não pode ser assim visto quando chegamos à conclusão de que o cenário social atual aponta claramente ao fato de que o Estado elegeu o seu inimigo e busca a todo momento combatê-lo. Há muito já não se pode falar em nosso país em um Direito Penal dos cidadãos, onde as garantias político-criminais, de dogmática penal e processual são respeitadas.
Na criação deste inimigo o Estado escolhe do indivíduo mais frágil, aquele que não conseguirá lutar contra esta estigmatização: “jovem, negro, de chinelo havaianas e shorts segurando uma metralhadora no meio da comunidade”. Esta é a clientela atual dos estabelecimentos penitenciários do nosso país.
A população, movida pela midiatização cada vez maior da barbárie como espetáculo, tensiona o Estado a todo momento pelo “combate” à criminalidade, pela ânsia de resposta imediata aos problemas criminais (muitas vezes através de prisões ilegais) e este aparelho estatal, por sua vez, encontra nesta clientela o meio mais fácil de demonstrar sua atuação em face dos problemas sociais.
Esta seletividade é socialmente acolhida. Como diz Khaled Jr.,
o tratamento penal da miséria é cada vez mais aceito como remédio para as mazelas da sociedade, fazendo do sistema penal um mecanismo de gestão da pobreza e de avanço totalitário da indústria de controle do delito.
Além disso, a própria aprovação social desta “política criminal” legitima que o Estado introduza estes indivíduos no sistema carcerário sem qualquer fomento às garantias mínimas exigidas pela dignidade da pessoa humana. Ao contrário, inserem seus “inimigos” em “calabouços” para quando saírem poderem retornar e assim manter o ciclo de (re)criminalização desta seleção.
Portanto, diante deste cenário, podemos concluir que a expansão do Direito Penal, por mais que em certas situações deva ser vista com bons olhos, deve levar em consideração que socialmente os maiores impactados pela ingerência penal estatal é uma parcela da sociedade que há muito foi selecionada como alvo de controle através dos mecanismos penais. Diante desta noção, fica claro que na prática a efetividade desta expansão resta comprometida, haja vista a sua utilização como forma de estigmatização de certo setor da população nacional.
Direito Penal do bem jurídico
Na prática, então, não há como se falar em um Direito Penal do bem jurídico, de proteção dos interesses sociais mais relevantes, mas sim em um Direito Penal voltado a atender demandas de classes sociais historicamente privilegiadas em prol do controle dos “inimigos da sociedade”.
REFERÊNCIAS
KHALED JUNIOR, Salah H.; ROSA, Alexandre Morais da. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. 3. ed. rev. e ampl. Florianópolis: EMais, 2018.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspecos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
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