Direito Penal do Inimigo no TJ/SP?
Por Marcelo Crespo
Nesta quarta-feira o Tribunal de Justiça de São Paulo tem uma excelente oportunidade de não se imiscuir em um tenebroso caminho de violação da independência funcional de um integrante da Corte Bandeirante. Explica-se.
A então juíza convocada para atuar em segunda instância, Kenarik Boujikian (famosa por condenar Roger Abdelmassih), está sendo (absurdamente) processada no âmbito da Corregedoria-Geral de Justiça porque é uma fiel cumpridora da Constituição Federal. Isso porque expediu alvarás de soltura para presos que, estando em prisão preventiva, já haviam cumprido mais tempo de pena que o fixado em sentenças condenatórias.
A representação foi feita por outro desembargador, que contesta a forma pela qual a magistrada atuou, já que está sendo acusada de ter violado o princípio da colegialidade, isto é, de decidir sozinha o que deveria ser decidido por um grupo de desembargadores. Em face de todo o contexto fica claro que a representação pretendeu ser um claro recado de que alguns magistrados daquela Corte não admitem “soltar pessoas demais”.
Antes da representação já o mesmo desembargador já havia requerido o afastamento da magistrada da sua Câmara sob o argumento de que a mesma não acompanhava as diretrizes e entendimentos consolidados pelos demais componentes da 7ª Câmara. Não tendo obtido êxito no quanto requerido, foi feita a representação.
A distorção é tão escandalosa que se chegou a afirmar que as solturas não teriam respaldo legal e que resultariam prejuízos irreparáveis aos réus porque ocasionaram a suspensão das execuções das penas (?). Assim, o desembargador que a representou entendeu que as mesmo tendo os presos cumprido mais tempo de cárcere que os impostos nas sentenças, deveriam eles aguardar os julgamentos das apelações. O tempo extra de prisão é irrelevante para o desembargador.
Quanto ao argumento da falta de previsão legal, trata-se de verdadeira aberração, beirando à irresponsabilidade na medida em que a prisão por tempo maior que o estabelecido na sentença é motivo para que o preso seja indenizado pelo Estado, nos termos no art. 5º, LXXV da CF/88 (“o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”). Além disso, o Código de Processo Penal estabelece que “quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei” haverá coação ilegal passível de cessação por meio do habeas corpus (art. 648, II) sendo que, no caso, a ordem deveria ser concedida de ofício (art. 654, §2º).
O absurdo não está passando despercebido, sendo que houve notas de repúdio emitidas pelo Instituto de Defensores dos Direitos Humanos – IDDH, pelo Instituto Terra Trabalho e Cidadania – ITTC, pela Pastoral Carcerária, pelo Justificando, pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD, além de um vídeo institucional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim.
Houve, ainda, a elaboração, pelo professor Maurício Zanoide de Moraes, de parecer pro bono esclarecendo não só não houve violação do princípio da colegialidade como as decisões de Kenarik mostram-se em perfeito alinhamento com a Constituição Federal e Código de Processo Penal, evitando inacreditável injustiça contra quem já havia cumprido o tempo de cárcere imposto pelo Judiciário e, ainda, evitando que o Estado fosse obrigado a pagar indenização pelo tempo extra de prisão.
Curioso mencionar, ainda, que o argumento de que a magistrada não acompanhava as diretrizes e entendimentos consolidados pelos demais componentes da 7ª Câmara é esdrúxulo tendo-se em vista que já se demonstrou, por exemplo, que o Tribunal de Justiça de São Paulo não segue a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o que implica em uma verdadeira enxurrada de habeas corpus dirigido a este tribunal. Vide a pesquisa “Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas corpus nos Tribunais Superiores”. Pelo visto a regra do descumprimento só é válida para os outros, especialmente para manter prisões desnecessárias (na verdade inconstitucionais e ilegais).
Não se pode esquecer, ainda, que o processo administrativo também se mostra uma verdadeira violação à independência judicial, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, já que o conteúdo da decisão judicial somente poderia ser contestado nestes termos em casos de corrupção ou improbidade.
Tudo indica, portanto, que a representação nada mais e que o retrato da cultura do encarceramento em massa e de um verdadeiro Direito Penal do Inimigo, em qualquer das ópticas que se quiser entendê-lo
Hoje o Tribunal de Justiça de São Paulo pode demonstrar que não cedeu ao Lado Negro da Força e que respeita a Constituição Federal. Veremos.
#somostodosKenarik
Foto: Gláucio Dettmar/CNJ